O sexo, quanto mais se esconde mais ele aparece

A regra moral que rege hoje os interditos e classificações do universo da Internet (e, especialmente, das redes sociais), um mundo onde só há conteúdos sem forma, foi projectada no mundo real dos museus, das bibliotecas, da esfera pública.

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A figura da liberdade, do quadro de Delacroix, avançando de peitos descobertos, quando transposta para o universo profano e indiferenciado da internet é apenas uma mulher de mamas à mostra

Delacroix, Courbet, Egon Schiele, Mapplethorpe e muitos outros artistas, clássicos e contemporâneos, têm sido objecto de uma censura, exercida de maneira cega nas chamadas “redes sociais”, mas com manifestações várias noutras esferas e alguma tendência para se generalizar. A emergência destes episódios em número crescente e em latitudes diversas tornou plausível o diagnóstico que aponta para uma nova onda de puritanismo. O alvo preferencial e quase exclusivo é o sexo, toda a iconografia que, de uma maneira ou de outra, o representa. Já não é preciso que haja insinuação ou ostentação de pornografia, basta o erotismo ou a simples sugestão do corpo sexual. Por exemplo, um quadro de Delacroix, La liberté guidant le peuple, já se sujeitou a ser banido porque a figura feminina, empunhando uma bandeira, que guia o povo da revolução é um mulher de mamas descobertas.

A arte e a literatura mobilizam o sexo, como nenhuma outra criação e actividade humanas. Por isso, é sobretudo no campo artístico e literário que este novo puritanismo tem tido uma acção visível e constante. A revolução sexual dos anos 60 do século passado e toda a sua herança política, estética e social estão a ser erradicadas e surgem hoje, meio século depois, como uma estrita dimensão de boom no plano da indústria e do mercado do sexo. Nesta onda puritana, desaparece a distinção convencional entre a arte erótica e a pornografia. É verdade que essa distinção serviu muitas vezes para legitimar outros puritanismos, mas a inflação e a extensão do território da censura acaba por atingir tudo o que tem a ver com o mundo das pulsões e dos estados-limite. Aqui e ali já se erguem sinais de que está em curso a preparação de um novo inferno para as bibliotecas e os museus. Começou a marcação das obras malditas. E, como sempre aconteceu nestas ocasiões, o incitamento à delação é elevada à categoria de virtude cívica.

Nos anos 60 e 70 do século passado assistimos a uma leitura de Sade ao mais alto nível das disciplinas dos estudos literários e da filosofia, na universidade e em outros círculos. Hoje, tal coisa parece inverosímil. Um autor como Bataille, que foi um escritor de culto, não teria hoje a mesma fortuna e até seria, provavelmente, escondido das boas famílias como uma degeneração monstruosa. E a sua madame Edwarda jamais levantaria o vestido para mostrar a parte maldita, onde o sexo e a religião se encontram enquanto domínios de uma heterologia que Bataille opôs ao plano das actividades humanas produtivas.

Como todos os puritanismos, incluindo o puritanismo estético dos regimes totalitários do século XX, esta nova onda puritana é guiada por uma lógica em que importa sobretudo a questão do conteúdo. O puritanismo sexual de que a arte está a ser vítima é eminentemente conteudístico e, portanto, supõe uma distinção ­— que é sempre uma maneira imprópria de olhar a arte ­— entre forma e conteúdo. O modo e o regime contemporâneo de circulação das imagens, através dos novos media, veio potencializar a classificação de Coisa obscena: a figura feminina da liberdade, do quadro de Delacroix, avançando de peitos descobertos, quando transposta para o universo profano e indiferenciado da Internet é apenas uma mulher de mamas à mostra. Tal como uma fotografia de Mapplethorpe, entrando no arquivo digital da pornografia, torna-se objecto da mais universal das fixações: a fixação no pénis. Acontece então que a regra moral que rege hoje os interditos e classificações do universo virtual da Internet (e, especialmente, das redes sociais) foi projectada no mundo real dos museus, das bibliotecas, da esfera pública. A arte, reduzida a puros conteúdos e representações, subtrai-se à condição artística. Para esta maneira puritana de olhar, a Mariana da República francesa é como uma puta que se exibe no bordel; e as figuras dos negros bem dotados das fotos de Mapplethorpe são meras realizações de um imaginário pornográfico, obsceno, que nenhuma outra dimensão vem resgatar. Não é que a arte ­— e especialmente a arte contemporânea ­— não possa incorporar a pornografia e rejeitar até a redenção do pornográfico pelo erótico, que corresponderia sempre a uma manobra idealista. Mas por mais crua que seja uma obra de arte, a sua obscenidade implica um pacto com o espectador que não é o das imagens para consumo pornográfico. Entre elas e o espectador há um filtro, um segundo grau. Elas solicitam-nos de outra maneira, por mais que pareçam exactamente iguais às imagens da iconografia pornográfica de uso corrente. Muitos dos equívocos da atitude censória que pratica uma rasura cega começam aqui. A questão de moral acaba por ser também uma questão estética.

Roland Barthes escreveu uma vez que os maus escritores incorrem no erro de pensar que basta dizer merda para que um cheiro nauseabundo chegue às narinas do leitor. Ora, não é nada disso que se passa: pode-se escrever merda muitas vezes sem que o texto merdifique. Os guardiães deste novo puritanismo não percebem nada disto e funcionam como as ordens de bloqueamento de sites nos computadores: vai tudo a eito. Na verdade, podemos hoje descortinar uma retroacção do mundo virtual sobre o mundo real. Assim, este novo puritanismo não pode ser desligado do mundo dos algoritmos, do mundo da indústria de conteúdos, isto é, do mundo onde só há conteúdos sem forma. As fotos de Mapplethorpe são, aliás, um bom exemplo do que estou a dizer. Elas são tão conformes a uma estética apolínea, o filtro do esteticismo é tão forte, nelas, que até apetece dizer que Mapplethorpe era uma puritano. Um puritano da forma. Fosse ele um pouco mais dionisíaco e as perversões escópicas dos novos puritanos sairiam derrotadas. Ou então, visitando o Museu de Serralves, mandariam colocar um aviso de interdição a menores na exposição ao lado, de Pedro Costa, um dionisíaco que nos faz tremer até aos fundamentos.

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