Onde é que tu estavas no tempo de José Sócrates?

Não percebo como é que as mesmas pessoas que hoje têm tantas certezas sobre o futuro do Brasil tinham tão poucas certezas sobre o Portugal de 2009.

À boleia de Herman José, Baptista-Bastos ficou famoso pela pergunta “ouve lá, onde é que tu estavas no 25 de Abril?”. A bem da salubridade do regime e da decência política, há uma outra pergunta que urge ser transformada em pregão popular: “Ouve lá, onde é que tu estavas no tempo de José Sócrates?” Graças às eleições brasileiras e à quantidade espectacular de portugueses que se assumiram como defensores apaixonados da democracia, acusando todas as pessoas que se recusaram a escolher entre Haddad e Bolsonaro de cúmplices do fascismo, dei por mim a perguntar aos meus botões onde é que estava esta gente tão fogosa, clarividente e ciosa das instituições entre 2005 e 2011, quando um primeiro-ministro se dedicava todos os dias a dinamitar os alicerces do regime democrático português.

Eu até fui daqueles que confrontado com a hipótese académica de escolher entre Haddad e Bolsonaro admitiu votar Haddad, mas não me passaria pela cabeça passar atestados de menoridade democrática a quem se recusou a optar entre o delfim de Lula da Silva e um confesso admirador da ditadura brasileira. A opção estava muito longe de ser evidente, mas sendo ela tão evidente para tantos portugueses, eu não percebo como é que as mesmas pessoas que hoje têm tantas certezas sobre o futuro do Brasil tinham tão poucas certezas sobre o Portugal de 2009, quando José Sócrates tinha acabado de exterminar o espaço noticioso mais influente do país, estava a tentar comprar o canal de televisão mais visto de Portugal, tinha sob o seu controlo a CGD e o BCP (do BES ainda não se sabia a missa a metade), fazia o que queria na PT, era acusado de corrupção no caso Freeport, tinha atrás de si um rasto infindável de suspeitas nunca justificadas, perseguia professores por causa de anedotas, processava jornalistas por dá cá aquela palha, tinha os serviços secretos na mão, namorava Hugo Chávez e Khadafi, espalhava insultos e grosserias através de blogues amigos e ministros desbocados (hoje grandes referências institucionais da nação), manipulava informações via Câmara Corporativa, controlava a ERC de forma obscena, colocava o arquivador-mor na Procuradoria-Geral da República, e por aí fora.

Espantosamente, os escanções da democracia daquela altura degustavam tudo isto e não lhes sabia a azedo. Ataques ao Estado de Direito em Portugal? Violência sobre as instituições? Tentativa de controlo dos meios de comunicação social? No pasa nada! David Dinis escreveu no jornal online Eco um texto onde criticava as colunas de opinião do Observador, não por apoiarem directamente Bolsonaro (não apoiaram), mas por o “justificarem” e o “normalizarem”. Só que eu sei onde estavam José Manuel Fernandes e Rui Ramos no tempo de Sócrates – estavam do lado justo da barricada, a defender a democracia portuguesa. No PÚBLICO, Francisco Assis acusava ontem a direita nacional de se deixar “encantar pelos cantos de sereia” do extremismo. Mas eu sei onde estava Assis no tempo de Sócrates – estava a defendê-lo no Parlamento, como líder da bancada do PS.

Digam cobras e lagartos de Bolsonaro, que eu junto-me já ao coro. Mas todos aqueles que em 2009 colocaram uma cruzinha no PS, tenham, ao menos, algum pudor em atirar-se aos que agora decidiram não escolher entre Bolsonaro e o PT. Preocuparmo-nos apenas com a qualidade dos regimes políticos abaixo do Equador não é ser democrata – é ser turista da democracia. Um campo em que a esquerda portuguesa mais parece a Agência Abreu.

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