Na Turquia, Mahmoud sonha: “Volto já amanhã para Síria se a guerra acabar”

Refugiado sírio chegou há seis anos à fronteira com a roupa de tinha no corpo. A viver em Esmirna com a família, é beneficiário do maior programa humanitário da UE e com ele conseguiu alguma estabilidade. Mas pensa todos os dias em regressar a Damasco.

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Naciye, Büsra Nur, Mahmoud e Gazel refizeram a sua vida em Esmirna European Commission/Eren Aytug

Sentado de pernas cruzadas num colchão gasto, na sala de estar da sua casa, e sob o olhar atento da mulher, Naciye, Mahmoud Ahmed fala com uma tranquilidade admirável. É sírio, de Damasco, e vive desde 2012 na Turquia, para onde foi obrigado a fugir quando o conflito no seu país se agravou. Seis anos volvidos da chegada à fronteira, apenas “com a roupa que tinha no corpo”, conseguiu refazer a sua vida e dar à família a segurança que, na Síria, não podia prometer. “A única coisa que coisa que quero é que nos mantenhamos vivos”, afirma. Isso e regressar a casa.

No primeiro andar de uma casa simples, num bairro periférico da cidade turca de Esmirna, o homem vestido com um polo vermelho, de olhos castanhos-claros e barba bem aparada começa por falar dos primeiros tempos na Turquia. Entrou no país pela fronteira mais próxima de Mardin, depois de uma viagem de mais de oito horas numa camioneta que transportava cerca de 100 pessoas, incluindo cinco membros da sua família. 

Garante não terem sido maltratados pelos soldados turcos que os levaram para um campo de refugiados instalado nos arredores daquela cidade na região sudeste da Turquia. Ao seu lado, Naciye atesta com a cabeça o relato do marido, enquanto a filha nova, Büsra Nur, vai alternando entre os braços do pai e da mãe, atenta às visitas.

Apesar da ajuda que recebiam no campo, Mahmoud queria ser independente para sustentar a família. Abandonaram o recinto ao fim de dez dias e fixaram-se em Mardin.

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Naciye diz o Kilizaykart é uma grande ajuda para a família e confessa estar mais “aliviada" European Commission/Eren Aytu

Os primeiros tempos não foram fáceis, muito por culpa da barreira linguística. “Durante três ou quatro meses não consegui arranjar trabalho porque não falava o idioma”, conta Mahmoud. As necessidades da família levaram-no a investir na aprendizagem acelerada do turco, um processo que rotulou de “difícil”, mas “imprescindível”. 

A mudança para Esmirna deu-se ao fim de um ano e foi nesta cidade banhada pelo mar Mediterrâneo que Mahmoud e Naciye encontraram alguma estabilidade para a família, que entretanto se alargou, com o nascimento das filhas.

“Quando saí da Turquia não pensava muito na nossa situação económica, apenas em manter-nos vivos. E aqui não vejo sangue e não oiço bombas. Não peço mais do que isso para a minha família”, resume o sírio, pai de duas meninas, de 2 e de 5 anos, e que tem ainda ao seu cuidado uma tia invisual, com 80 anos.

A Europa como destino, garante Mahmoud, nunca foi uma possibilidade. Mesmo tendo ouvido, através de familiares, que os refugiados “têm mais apoios lá”, recusa sujeitar a família a fazer a travessia: “As minhas filhas são muito pequenas, tenho uma família e a única forma de ir para a Europa é por mar. Nunca as colocaria em perigo”.

Independência e dignidade 

A família de Mahmoud foi recentemente admitida no Emergency Social Safety Net (ESSN), o maior programa humanitário de sempre da União Europeia, com um financiamento de 998 milhões de euros. Integrado no mecanismo de apoio aos refugiados na Turquia acordado entre Bruxelas e Ancara em 2016 – cujo orçamento total aponta aos 6 mil milhões de euros, até 2019 –, o ESSN entrou em vigor no final desse ano. Destina-se aos refugiados mais vulneráveis e consiste na atribuição de uma contribuição financeira que os ajude a cobrir as necessidades mais básicas.

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Mahmoud, a mulher e a filha mais nova, na varanda de sua casa, em Esmirna European Commission/Eren Aytug

Os refugiados admitidos no programa, cujo acesso depende de registo e candidatura prévias junto das autoridades turcas, recebem um cartão de débito por cada elemento da família – conhecido entre os refugiados por Kilizaykart –, que é carregado mensalmente com 120 liras turcas (cerca de 17 euros). Estão ainda previstos carregamentos adicionais pontuais, mediante o cumprimento de determinados requisitos, relacionados com o número de membros da família ou com a existência de pessoas doentes, deficientes ou incapacitadas.

Martin Penner, do gabinete do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas na Turquia – responsável pela implementação do ESSN, juntamente com o Governo da Turquia e o Crescente Vermelho Turco – destaca as vantagens da ajuda humanitária sob a forma de dinheiro, em comparação com outras soluções, como os cupões de alimentação ou os donativos de vestuário, mobiliário e bens similares.

“O dinheiro permite aos beneficiários definirem quais as suas prioridades económicas, consoante as necessidades específicas das famílias. É uma fórmula que lhes proporciona independência e dignidade ao mesmo tempo”, afirma Penner.

Segundo o britânico, mais de 1,3 milhões de refugiados recebem ajuda através do ESSN. A grande maioria são sírios – quase 90% –, mas os números também incluem iraquianos, afegãos, iranianos ou somalis. De acordo com as autoridades turcas, a Turquia abriga neste momento perto de 4 milhões de refugiados. Desses, cerca de 180 mil permanecem em campos.

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Naciye brinca com a filha Büsra Nur European Commission/Eren Aytug

Alívio e esperança

Naciye confessa que o Kilizaykart é uma grande ajuda e diz-se “aliviada”: “A vida antes dos cartões era dura para nós. A renda da casa é muito alta e o meu marido recebe pouco”. 

Alfaiate de profissão, Mahmoud encontrou trabalho numa pequena loja em Esmirna, mas com um salário reduzido, por se tratar de uma contratação sem licença de trabalho e, portanto, à margem da lei turca. Recebe 150 liras (cerca de 23 euros) por mês. Sem as 600 liras recebidas mensalmente através do cartão, seria impossível para esta família síria pagar a renda de casa, calculada em 500 liras.

“Passámos por muitas dificuldades antes de ter o cartão e agora estamos a endireitar-nos. Ainda não conseguimos poupar dinheiro, mas estamos melhor”, diz Mahmoud, enquanto concentra seriamente o olhar na chávena de café que se encontra à sua frente.

A Turquia deu a esta família uma nova oportunidade. E sobre os turcos, Mahmoud não tem nada a apontar: “Não temos quaisquer problemas, fomos muito bem recebidos em Esmirna, comemos juntos, jogamos futebol. E no hospital, quando nasceram as minhas filhas, deram-nos todo o apoio”. Mas o regresso a casa é para este sírio uma certeza, independentemente das oportunidades que a Turquia lhe poderá reservar a si e às suas filhas.

O fim da guerra, confessa Mahmoud, acompanha o seu pensamento desde o dia em que virou as costas a Damasco e partiu para a fronteira. E é dele que se alimenta. “Espero que a nossa vida não acabe aqui na Turquia e que possamos regressar. Se a guerra acabar amanhã, volto amanhã para a Síria”.  

O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia

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