Antónia tem 86 anos mas, apesar da lei, querem que saia de sua casa

Ex-inquilina da Fidelidade recebeu uma carta a dar conta da não renovação do contrato de arrendamento da casa onde mora há 56 anos. Helena Roseta diz que o novo proprietário não pode pôr fim ao contrato porque a lei não o permite.

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Daniel Rocha
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Antónia Albuquerque faz 86 anos esta sexta-feira, no “dia dos mortos”, como diz, e não entende como, ao fim de mais de 50 anos a morar numa casa pode ser posta fora dali. Uma carta, datada de 18 de Outubro, chegou-lhe pelo correio, com aviso de recepção, informando-a que o seu contrato de arrendamento não será renovado e que a 30 de Junho de 2019 tem de entregar as chaves e o apartamento vazio ao senhorio. 

Antónia foi morar para a Rua Ivens, no Dafundo, concelho de Oeiras, em 1962, num prédio que, anos mais tarde, se tornou propriedade da Fidelidade – Companhia de Seguros, que acabou por vender este e mais três edifícios ali próximos no final de Agosto. A nova proprietária, Meritpanorama, Unipessoal Lda, enviou aos moradores destes prédios, já no início de Setembro, uma carta a informar da venda com todos os detalhes para o pagamento das "rendas mensais e todas as despesas ou montantes devidos pelo arrendatário".

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Pouco depois, começaram a chegar as primeiras cartas aos inquilinos, dando-lhes conta de que a empresa se opunha à renovação automática dos contratos. No entanto, algumas das pessoas que estão a ser contactadas, como Antónia Albuquerque, enquadram-se numa moratória, aprovada em Maio e em vigor desde 17 de Julho, que protege arrendatários idosos ou com deficiência que habitem nas casas há mais de 15 anos.

Para Helena Roseta, deputada independente do PS, e que coordenou até à semana passada o grupo de trabalho parlamentar sobre habitação, à luz desta moratória, os senhorios não podem opor-se à renovação dos contratos. “[Para] aqueles que tem mais de 65 anos e que moram há mais de 15 anos nessa casa, independentemente do contrato que tenham, não pode haver oposição à renovação nesta fase. Os prazos suspendem”, explicou. 

De acordo com o diploma publicado em Diário da República, este regime "aplica-se aos contratos de arrendamento para habitação cujo arrendatário, à data da entrada em vigor da mesma, resida há mais de 15 anos no locado e tenha ou idade igual ou superior a 65 anos ou grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %". Os inquilinos abrangidos por esta lei podem, assim, beneficiar da "suspensão temporária dos prazos de oposição à renovação e de denúncia pelos senhorios de contratos de arrendamento".

"A lei tem de se tornar definitiva"

Antónia bem sabe que a casa não é sua, mas nunca pensou estar assim, a ser “enxotada” da casa que foi fazendo sua ao longo da vida. Na sala repleta de fotografias senta-se numa cadeira, enrolada no robe cor-de-rosa, e lamenta-se: “Sem mais nem para quê tenho de deixar a minha casa. Põem-me na rua sem mais nem para quê. Queria morrer aqui”. 

Era “uma menina”, quando para ali foi viver com o marido. Nasceu no Alentejo, numa terra perto de Estremoz, mas acabou por vir, “novinha”, morar para casa de uma tia, na capital, e trabalhar numa gráfica. Foi lá que conheceu o marido, com quem foi casada mais de 40 anos e que lhe morreu há 18. Hoje, vive naquela casa sozinha. Os olhos e os ouvidos já lhe falham mas, perto dos 86 anos, mantém a sua autonomia.

Em 2014, a Fidelidade enviou-lhe um novo contrato, com um prazo de cinco anos, já enquadrado no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que termina a 30 de Junho de 2019. A renda foi actualizada, passando dos 70 euros para os 110.

Antónia diz que, por desconhecimento, não se opôs ao mesmo. O que aconteceu foi que, ao abrigo do NRAU, quem passou a ter contrato a prazo tinha um determinado prazo para contestar. Quem não respondesse à missiva, estaria de acordo com as novas condições. “Eles [os moradores] foram passados para uma situação contratual sem terem dado consentimento. A lei foi mal feita. As pessoas ficaram sujeitas a condições contratuais e não perceberam as consequências. Tudo isto é uma coisa que não está certa. E é o que nós agora queremos reverter”, aponta Helena Roseta. 

Esta moratória não é mais do que um regime "extraordinário e transitório" que está em vigor até 31 de Março. O que é prioritário para Helena Roseta é que se proceda à revisão do regime do arrendamento urbano para se criar um quadro definitivo de protecção dos inquilinos em função da idade e deficiência. A legislação estava já em discussão, mas a votação acabou por ser adiada pelo PS e empurrada para depois da discussão e aprovação da proposta de Orçamento do Estado para 2019, cujos trabalhos deverão estar concluídos nos primeiros dias de Dezembro.

“Há um compromisso do primeiro-ministro para voltar ao tema no dia 4 de Dezembro. Assim espero”, disse Roseta, que é também presidente da Assembleia Municipal de Lisboa. “É preciso que saia a lei definitiva para que não chegue o 31 de Março e acabe a moratória. A suspensão era apenas ganhar tempo enquanto íamos mudar a lei, mas a lei tem de se tornar definitiva”, reforçou.

“Estar assim a ser enxotada, revolta-me”, lamenta, emocionada, Antónia. Com o filho Luís, vai agora procurar apoio jurídico para tentar travar a decisão do proprietário. Os poucos vizinhos com quem fala ainda não receberam a carta, mas acreditam que isso acontecerá com o aproximar do término dos contratos. 

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