Tancos: fumaram, mas não inalaram

Só faltava agora tratar os portugueses em geral de modo pueril ou infantil, procurando fazer passar a ideia de que somos governados por gente distraída.

1. Desde a primeira hora, tanto neste espaço de opinião como em outros fora mediáticos e públicos, considerei o roubo de Tancos como um caso muito sério para as Forças Armadas, para a sua afirmação e para o seu prestígio nacional e internacional. Também desde esse primeiro momento, exprimi a opinião de que o poder político-administrativo e a hierarquia militar deviam actuar célere e determinadamente. Ao longo de toda a crise e das suas incríveis vicissitudes, chamei invariavelmente a atenção para que, diante da inércia das chefias militares, cabia ao poder político – ao Governo e ao ministro da Defesa, em especial – censurar essa inércia e impor a assunção de responsabilidade hierárquica. Em face do acontecido, tendo em conta que se curava de uma matéria de segurança operacional e considerando a autonomia e especificidade das Forças Armadas, defendi consistentemente que o primeiro (e desejavelmente único) patamar de responsabilidade deveria ser o militar. Só se o poder político, recorrentemente confrontado com a inacção da hierarquia o Exército, renunciasse ao exercício da sua autoridade, a responsabilidade acabaria por se comunicar inevitavelmente à hierarquia política. Na verdade, enquanto que, no caso dos incêndios de Pedrógão, sustentei, logo nos dias imediatos, a demissão da então ministra da Administração Interna, já no roubo de Tancos, nunca sugeri a demissão do coetâneo ministro da Defesa. Mesmo depois do misterioso aparecimento do material em falta – que altera definitivamente o rumo do caso, agravando-o de sobremaneira – mantive a opinião de que o nível político estava ainda em condições de repor a normalidade institucional. De resto, ainda há pouco mais de um mês, já em estado adiantado de crise, disse uma outra vez aos microfones da rádio que, até pelo que dele conheço, me custa a crer que o então ministro da Defesa Azeredo Lopes pudesse ter actuado como hoje se especula que actuou. Por tudo isto, e como aqui escrevi há algumas semanas, o exercício firme e determinado da oposição e do combate político é uma forma de serviço do interesse nacional. O silêncio, a passividade ou a banalização deste problema não constituem uma opção, nem servem o interesse nacional. A situação é demasiado grave e demasiado séria para tudo culmine num abafamento ou branqueamento em nome de supostos valores de escala superior. Tancos não pode transitar da condição de paiol ou paiolim para o estatuto do “grande armário” onde se guardam os esqueletos do regime. E se o Governo e o PS não compreendem este imperativo, então são curtas as suas vistas e gelatinosos os seus sempre apregoados pergaminhos democráticos.

2. Entendamo-nos: o desaparecimento de material militar é muito grave. Mas sendo muito sério, está ainda na esfera do compreensível e digerível, pois qualquer mortal percebe o propósito maligno do roubo de armas e munições  (por exemplo, venda no mercado negro ou uso em actividades terroristas e de banditismo). Já o surpreendente aparecimento de uma grande parte do material implica, em si mesmo considerado, o trânsito para um nível muito mais profundo de gravidade. Este aparecimento é, desde logo, do domínio do misterioso e do altamente perturbador. Com que intuito e em que contexto ladrões de armas ou traficantes de armamento decidem devolver o acervo de bens que antes roubaram ou sonegaram? Como podem tais materiais ser descobertos pelas entidades policiais e não haver nenhum indício de quem os roubou, furtou ou desviou? Em que medida podem as entidades de investigação ter cooperado com os possíveis autores dos crimes de roubo? Será que um acontecimento deste jaez poderia alguma vez passar despercebido e ser desqualificado por autoridades militares e políticas que, ainda por cima, estavam debaixo do escrutínio mediático e político?

3. Justamente porque o aparecimento do material em falta se antolha altamente intrigante e perturbador, não é minimamente plausível nem crível que as chefias militares e as autoridades políticas alguma vez tivessem desvalorizado ou menorizado qualquer pista, qualquer informação ou qualquer relatório que pudesse fazer alguma luz sobre o assunto. E é, por isso, que, sem formular qualquer juízo prévio, não pode aceitar-se a tentativa de branqueamento de um eventual conhecimento da situação (que foi claramente ensaiada neste fim de semana). Se houve, por banda de responsáveis militares e políticos, acesso a alguma informação, por mais escassa, confusa ou intrigante que seja, é evidente que ninguém a desvalorizou e que ninguém a podia ter desvalorizado. É absolutamente óbvio que, atento o historial do caso e o insólito do aparecimento do material em falha, nenhum responsável que tivesse acesso a uma qualquer tentativa ou arremedo de explicação iria ignorar, desconsiderar ou menosprezar essa indagação.

4. O roubo das armas e a sua miraculosa reaparição são já de si extremamente inquietantes. Só faltava agora tratar os portugueses em geral de modo pueril ou infantil, procurando fazer passar a ideia de que somos governados por gente distraída, que se faz desentendida nos momentos cruciais em que é chamada a governar. Nenhum regime democrático e liberal sobreviverá à passagem de um atestado de menoridade aos seus cidadãos.

E não colhe também a tentativa – ensaiada num ou noutro discurso – de sacrificar os imperativos de verdade, de transparência e de prestação de contas a uma qualquer razão de Estado. É fundamental que não se caia no erro, muito comum nas culturas de matriz católica, de pensar e actuar como se o escândalo fosse pior do que o pecado. O melhor é atermo-nos mesmo ao cânone em que tem insistido o Presidente da República e que se resume ao brocardo “doa a quem doer”.

Não podemos nem aceitaremos ficar naquele conveniente mundo de Bill Clinton, em que eles nos confessam que fumaram e não inalaram. É bom lembrar que não estamos a falar de uma jovial tarde de “marijuana” num campus universitário.

  

SIM. Angela Merkel. Na cena política alemã, confirma-se o ocaso da chanceler. Oxalá possa frutificar na vida europeia. Basta pensar na Europa sem Merkel para reconhecer a sua enorme estatura política.

SIM. Fausto de Quadros. Juntamente com Dusan Sidjansky, acaba de lançar um impressionante estudo colectivo, intitulado O Futuro da Europa. Uma obra de grande fôlego e de enorme oportunidade.

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