Filmes de terror e casas assombradas: o que nos faz gostar de ter medo?

O medo, sentido de forma segura, ajuda a “desligar o cérebro” durante as situações assustadoras, dando um sentimento de conquista, de se ter ultrapassado um obstáculo. Mas tudo tem de ser feito de forma voluntária.

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Estar numa situação de medo e perigo de forma voluntária pode parecer contra-natura, mas é isso que acontece quando alguém decide ver um filme de terror ou entrar numa casa assombrada – mesmo que o perigo não seja real. Mas há alguma vantagem em sentir medo, calafrios, sustos e arrepios? “Ironicamente, o medo reduz o stress e a ansiedade”, explica ao PÚBLICO a investigadora norte-americana Margee Kerr, conhecida como a “socióloga do medo”, que publicou no início de Outubro um estudo no site da American Psychological Association sobre o que nos faz gostar de situações assustadoras.

“Quando estamos nesses momentos intensos, estamos presos ao momento, à realidade. Não se está a pensar no futuro, está-se a pensar no aqui e agora. Não ficamos emaranhados nos nossos pensamentos, a ruminar ou a pensar no que temos de fazer a seguir”, afirma a investigadora, que passou dois anos a recolher dados numa casa assombrada nos Estados Unidos, juntamente com o neurocientista Greg Siegle, ambos da Universidade de Pittsburgh.

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"Casa Assombrada", em Sintra, é uma plataforma imersiva de terror criada pelo Teatro Reflexo Rafael Marchante/REUTERS

“Há milénios que o homem tem uma estranha atracção pelo desconhecido e pelo medo, embora racionalmente o esteja sempre a evitar”, diz também ao PÚBLICO o psicólogo clínico português Humberto Rodrigues, que em Novembro será um dos oradores do Congresso do Medo, na Universidade Fernando Pessoa, Porto.

“Estas são actividades que nos levam ao limite e no final sentimos que conquistámos algo, como se tivéssemos ultrapassado uma adversidade e sobrevivido, ainda que no fundo saibamos que não é verdade”, conclui Margee Kerr na entrevista telefónica. Esta sensação vai além da simples fasquia de ser algo “divertido” e que liberta adrenalina.

Depois de analisarem os registos de actividade cerebral de alguns participantes da casa assombrada norte-americana, os dois investigadores chegaram à conclusão de que o medo ajuda a “desligar” partes do cérebro, fazendo com que os participantes se sintam melhor depois da experiência – similar ao que acontece com quem pratica meditação ou corre maratonas. “Talvez tudo o resto pareça insignificante depois de se ver um filme de terror ou ir a uma casa assombrada.”

Facas, caixões e choques eléctricos

O estudo tem por base uma experiência feita a 262 adultos (139 mulheres e 123 homens), que já tinham comprado bilhete para uma casa assombrada “extrema”, onde só pode entrar quem tenha mais de 18 anos. Nesta casa assombrada, a ScareHouse, há mais de uma centena de actores a tornar a experiência assustadora: os participantes podem ser “raptados”, fechados num caixão, sujeitos a choques eléctricos e ainda podem ser esfaqueados — a fingir, claro. A intensidade da experiência obriga até a ter uma palavra de segurança: se alguém se sentir mal durante a visita, deve gritar “bunny” (coelhinho, em português).

Os dois investigadores fizeram análises aos 262 participantes, questionando-os antes e depois de entrarem (e ainda fizeram encefalografias a 100 deles). O estudo revelou que a disposição daqueles que participaram melhorou, sobretudo para os que se sentiam “cansados, aborrecidos ou stressados” antes de entrar; 94% dos participantes disseram ter gostado da experiência e a maior parte deixou de se sentir “cansado” ou “ansioso”. E mais: quanto mais assustados ficavam, melhor se sentiam no final.

“Nunca temos a certeza do que está à nossa frente”

Frederico Santos tem 26 anos, é estudante de Medicina e assume ser “fã deste tipo de projectos”, razão que o levou a participar em várias edições de casas assombradas. “No final, sinto uma mistura de satisfação por ter conquistado os meus medos, em combinação com um alívio que se manifesta pelo desaparecimento progressivo de toda a adrenalina. Às vezes saio a sentir-me fisicamente drenado”, conta ao PÚBLICO.

As casas assombradas, diz, criam em si um clima de medo e tensão ainda antes de entrar. Dado o primeiro passo, o foco é “brincar com os sentidos”: “A privação sensorial atrapalha muito os nossos cérebros e, por si só, pode causar alguma tensão nos nossos organismos. Nunca temos a certeza daquilo que está mesmo à nossa frente” – e os sustos valem “embora se saiba que se está num ambiente seguro”.

“Por vezes somos desafiados a enfrentar situações que provocam medo ou ansiedade a certas pessoas mesmo em contextos fora de casas assombradas, tal como ficar fechado sozinho dentro de um espaço pequeno”, exemplifica o estudante, que também diz gostar de filmes de terror e de visitas guiadas a locais com histórias macabras.

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Daniel Rocha

No estudo, os resultados são semelhantes: “Os participantes gostaram e beneficiaram muito daquilo que muitos considerariam uma experiência violenta”, lê-se. No final da experiência, concluem os investigadores, os participantes sentiam que tinham desafiado e enfrentado os seus medos e que tinham ficado a conhecer melhor os seus limites.

Ter medo de ter medo

A socióloga norte-americana reconhece que é “crucial” que estas experiências sejam voluntárias para que surtam efeitos positivos. Até porque se tratam de práticas que, “fora deste contexto, são verdadeiramente assustadoras”.

Para Humberto Rodrigues, não gostar de actividades deste género pode ser explicado por “influências culturais ou educacionais”, e também “pelo receio de sofrer algum tipo de dano”, seja ele físico ou psicológico. O psicólogo clínico de 46 anos diz conhecer dezenas de casos em que o medo chega a ser incapacitante e que tal sentimento é transversal ao género e à idade.

A consultora Sara Mota, de 26 anos, argumenta que não tem propriamente uma experiência anterior que justifique a forma como se assusta tão facilmente ao ver filmes de terror: “Sinto-me assustada com o suspense, não acho engraçado. Não é o meu género e parece-me tudo macabro, surreal até. Se puder evitar, evito.”

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“Eu sei que vou ter medo, mas assusto-me à mesma”, conta. Há dois anos participou numa casa assombrada e diz que passou grande parte do tempo a gritar, assustada. “Quando saí senti-me aliviada, mas foi só por já estar fora dali e poder respirar”, admite ao PÚBLICO. “Fico stressada por não saber o que aí vem, o suspense mata-me.”

A investigadora Margee Kerr refere que a aversão ao terror “tem muito a ver com experiências pessoais, mas a parte genética também entra na equação”. “Há diferenças na forma como as pessoas respondem ao stress e, se não tiverem tido a oportunidade de sentir este tipo de medo de uma forma segura, podem não saber que há benefícios”, explica.

E é precisamente por esse caminho que a socióloga quer enveredar para que o seu estudo possa ajudar quem lide com casos de stress e experiências traumáticas. “É nisso que estamos a trabalhar. Estamos a ver se conseguimos fazer com que as pessoas melhorem os seus estados de ansiedade, permitir-lhes sentir medo de uma forma mais fácil e dar-lhes oportunidade de o praticar de uma forma segura”, afirma. E acredita que, “mesmo que não se goste de casas assombradas ou de filmes de terror, manter um espírito aventureiro é uma coisa boa que nos ajuda a desafiarmo-nos a nós mesmos de uma forma segura e criativa”. 

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