Morreu Gérald Bloncourt, "o franco-atirador" dos bidonvilles e da emigração portuguesa “a salto”

Nas décadas de 1950 a 70, o fotojornalista registou vários momentos e fenómenos-chave da vida portuguesa, da emigração ilegal ao quotidiano do regime de Salazar e, depois, do país pós-revolução. Os bairros de lata eram "uma forma de escravatura moderna" e ele um "franco-atirador da imagem".

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Uma das imagens de "Uma Vida Melhor" Gérald Bloncourt
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Tiago Petinga/Lusa
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PAULO PIMENTA
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PAULO PIMENTA / PUBLICO

O fotojornalista Gérald Bloncourt era também pintor e poeta. Mas foi como fotógrafo, e para Portugal em particular como retratista das crianças dos bidonvilles, os bairros de lata parisienses recheados de emigrantes portugueses e das suas histórias, que se distinguiu. Morreu segunda-feira, em Paris, a cidade que o acolheu depois de ter nascido no Haiti, segundo disse à Agência Lusa uma fonte da família. Tinha 91 anos.

Nas décadas de 1950 a 70, depois de ter abandonado o país onde nasceu em 1926 de mãe francesa e pai de Guadalupe, o fotojornalista registou vários momentos e fenómenos-chave da vida portuguesa, da emigração ilegal ao quotidiano do regime de Salazar e, depois, da vida pós-revolução. Gérald Bloncourt regressou à actualidade portuguesa na última década, quando uma sucessão de livros, filmes, projectos e exposições recuperou a memória – por vezes dolorosa – do seu trabalho sobre a realidade do Portugal do século XX. Uma imagem desse reencontro com Portugal é a de Maria da Conceição Tina, uma das crianças que retratou num bairro de lata depois de ter viajado com a família de forma ilegal, “a salto”, até França, fotografia que foi exposta, entre outras, no Museu Berardo em 2008 (na mostra Por Uma Vida Melhor — O Olhar de Gérald Bloncourt) e alvo de um projecto de identificação daqueles meninos e meninas e que teve um final feliz.

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Maria da Conceição Tina Paulo Pimenta

“Fomos a salto, como toda a gente”, dizia Maria da Conceição Tina em 2011 ao PÚBLICO. O relato do seu encontro com Gérald Bloncourt é tanto sobre ela quanto sobre as consequências e o lastro da emigração, da pobreza e da discriminação em Paris naquela década de 1960. Não se recordava, com seis anos, de ter visto um fotógrafo pelo bairro a fazer retratos. Em 2011, depois de o reencontrar em Paris, lembrava-o assim: “É tão alto. Um homem enorme, com umas mãos muito grandes e um olhar tão terno.” Teve a sensação de que já o conhecia. “O Gérald diz que naquele dia da foto, no bidonville, eu fiquei à espera que me fotografasse, sorridente. Se calhar foi por isso que me pareceu tão familiar”, contava à jornalista.

Do outro lado, Gérald Bloncourt revia 50 anos de trabalho: “Quando ela chegou, tive diante de mim meio século de memórias. Vi a minha pequena Maria que estava ali. Fiquei muito maravilhado porque ela não tinha mudado. O seu olhar era o mesmo que na fotografia de criança e o seu sorriso também. Abraçámo-nos, chorámos, foi muito emocionante", disse o fotógrafo à Agência Lusa em 2015. Em 2011, no PÚBLICO, Maria da Conceição Tina deixava-lhe uma garantia — “Por enquanto, quero que saiba que a sua petite portugaise já não tem vergonha do seu passado e é uma mulher feliz”.

“Uma forma de escravatura moderna"

O trabalho de Gérald Bloncourt passaria várias vezes por Portugal ao longo de uma carreira em que foi fotógrafo free lance ou residente de publicações como o Nouvel Observateur. “Sou um franco-atirador da imagem”, diria há dois anos ao jornal digital francês Media Part. Militante comunista, fez parte de um pequeno grupo de revolucionários que tentou uma revolução marxista no Haiti, tendo sido preso e condenado à morte, mas nunca executado por ter também nacionalidade francesa. Foi expulso do Haiti em 1946 e rumou a França. Trabalhou na publicação sindical La Vie Ouvrière onde, disse ainda ao Media Part, se cruzou com “alguns dos grandes nomes da fotografia: Cartier-Bresson, Willy Ronis e Roger Pic”.

Descrevia, na mesma entrevista à Lusa em 2015, os bairros de lata de Paris onde viviam tantos portugueses como “uma forma de escravatura moderna. Havia lama no inverno, era frio. Eram barracas feitas com tábuas, bocados de chapa. Era uma vida difícil, muito rude. Os homens iam trabalhar para as obras, as mulheres ficavam com as crianças”. O primeiro que fotografou foi o de Champigny-sur-Marne, nos arredores de Paris, e esses contactos fizeram-no querer conhecer as formas como chegavam ali os emigrantes. Produziu, tanto nos bairros de lata quanto nos Pirenéus e nas duras rotas do “salto”, “extraordinárias fotografias”, como descrevia o crítico António Araújo em 2012, a propósito do livro La dictature de Salazar face à l’émigration. L"État portugais et ses migrants en France (1957-1974), do investigador Victor Pereira.

Estaria depois a par da revolução de Abril e aterraria novamente em Portugal pouco antes do histórico 1 de Maio de 1974, em que um milhão de pessoas saíam às ruas. Veio no mesmo avião que o líder do PCP Álvaro Cunhal. Antes disso, como relatava à Lusa, conhecera outro país: “Fui a Portugal na época de Salazar, fiz toda a rota da emigração, de Lisboa passando pelo Porto, Chaves e aquela região. Fui mesmo detido pela PIDE uma vez. Eu tinha metido rolos para eles na mala e eles encontraram-nos. Mas eu tinha colado nas costas um par de meias com os rolos de fotografias importantes que consegui salvar e que estão hoje publicadas e expostas.”

Em 2016, Gérald Bloncourt foi condecorado com a ordem de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e a ministra da Cultura, Graça Fonseca, descrevia-o segunda-feira à noite como um “fotógrafo comprometido, militante humanista e poeta do quotidiano, dono de uma sensibilidade que incomodava pela franqueza”, recordando como acompanhou, “entre 1954 e 1974, as gerações de portugueses que fugiam de um país em ditadura”.

Numa nota enviada às redacções, Graça Fonseca qualificava como “o percurso do fotógrafo Gérald Bloncourt está ligado ao imaginário colectivo da emigração portuguesa em França”. Descrevendo o seu “gesto marcado pela objectividade, como é o dos grandes fotógrafos”, a ministra considera que Bloncourt “contou a história silenciada, envergonhada e escondida de um país fechado sobre si próprio”, dando a conhecer “as duras condições de vida de gerações que a ditadura obrigou a partir e que procuravam na periferia parisiense melhores condições de vida”.

“Com as célebres fotografias do ‘bidonville’ de Champigny-sur-Marne, nos arredores de Paris, e dos bairros da cintura industrial da capital francesa, Bloncourt assinou um capítulo da história de Portugal”, diz Graça Fonseca.

Depois da exposição no Museu Berardo o seu arquivo de mais de 200 mil imagens foi escrutinado pelo projecto "Reconhece alguma destas crianças?" (alojado no site entretanto desactivado www.osmeninosdosbidonvilles.com) em busca dos seus retratados. Só algumas se identificaram. Doou cerca de 100 fotografias ao Museu das Migrações e das Comunidades de Fafe e em 2014 esteve no festival de cinema documental Filmes do Homem, em Melgaço, a acompanhar a itinerância da mostra Por Uma Vida Melhor.

Gérald Bloncourt será sepultado a 5 de Novembro no Cemitério do Père Lachaise, em Paris. Falando da sua experiência no jornal comunista L'Humanité, onde cobriu vários conflitos sociais, contou ao jornal regional francês La Dépêche como se tornou um fotógrafo comprometido com o seu tempo: “Foi assim que aprendi o trabalho de fotojornalista e percebi que era possível militar, resistir e mudar as coisas com uma câmara na mão. Foi então que me tornei independente.”

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