“A cozinha vai tornar-se o grande tema filosófico”

Tal como aconteceu com a sexualidade nos anos 1960, problematizada e transformada em tema filosófico e político, o mesmo começa a acontecer hoje com a cozinha e a alimentação, diz Daniel Innerarity. Afinal, “aí joga-se todo o humano”.

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Filósofo espanhol, investigador do centro Ikerbasque da Universidade do País Basco, director do Instituto de Governação Democrática, Daniel Innerarity é um pensador interessado sobretudo nos temas da política e da democracia. O que o levou então a escrever, com o chef basco Andoni Aduriz, um livro — Cocinar, Comer, Convivir — no qual ambos reflectem sobre o papel da comida nas nossas vidas?

Innerarity esteve em Lisboa para participar, ao lado de Aduriz, no Congresso dos Cozinheiros, organizado pelas Edições do Gosto e que aconteceu no início de Outubro na Lx Factory. A comida foi o ponto de partida para uma conversa com o P2 que se transformou numa reflexão sobre o mundo hoje e o olhar que um filósofo pode ter sobre ele.

Porque é que decidiu juntar-se a um chef como Andoni Aduriz para fazer um livro?
Andoni e eu somos amigos há anos e escrevemos este livro de uma forma não intencional. Juntávamo-nos para comer e íamos falando de temas, ele gostava de filosofia, eu gostava do que ele fazia e fomos trocando opiniões, às vezes por escrito, eu comentando conferências que ele preparava e que me mandava. Até quase ao final, o que estávamos a fazer era a manter uma conversa. Mas no final do processo decidimos que o que estávamos a fazer era um livro.

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Há um lado filosófico no trabalho de Andoni?
Sim, conheço alguns cozinheiros e Andoni tem a peculiaridade de ser especialmente reflexivo, interessa-lhe muito fazer perguntas acerca do significado do que faz. O recurso a um filósofo foi-lhe útil e eu gosto de estar com pessoas que têm problemas, não os que têm soluções. Esse carácter reflexivo de Andoni encontrou um aliado em mim, que sou um curioso insaciável.

O que é que torna uma conversa filosófica? Todos podemos estar no café a falar da vida mas o que é que coloca algo ao nível da filosofia?
O que diferencia a conversa filosófica de qualquer outra é o afã de problematização das coisas. Qualquer pessoa fala de futebol, do tempo, de política, com os seus vizinhos e os seus amigos mas em geral creio que nas conversas vulgares há mais respostas do que perguntas. Nas conversas de tipo filosófico há mais perguntas do que respostas. O que nos interessa é perguntar pelo sentido que existe nas coisas, um sentido que não é imediato ou fácil.
Por exemplo, no mundo da cozinha, a mim o que me atrai — e eu sou um filósofo que me dedico fundamentalmente à filosofia política — é que há uma microssociedade. A cozinha é, como diria Marcel Mauss [sociólogo francês, que morreu em 1950], um facto social total. Aí joga-se todo o humano, as questões que têm que ver com a família, a política, a sustentabilidade, o meio ambiente, as relações sociais, a materialidade, as relações homem-mulher. Creio que isso é o que faz com que o tema seja tão potencialmente filosófico.
Há uns anos, quem nos diria que a sexualidade se poderia converter num dos grandes temas filosóficos quando era um assunto que tinha que ver com o privado, sem especial relevância, algo destinado à mera reprodução. Os filósofos dos anos [19]60 convertem-no num tema-estrela. Creio que em muito pouco tempo, a cozinha começará a ter, e continuará a ter, um significado parecido. Vai ser o grande tema. Precisamente por isso, porque aí joga-se todo o humano, para o bem e para o mal.

Porque é algo de básico, essencial e vital? Há outros temas filosóficos que não fazem a diferença entre viver e morrer, mas a alimentação é tão vital como a sexualidade.
Exacto. Pensar que a sexualidade é um procedimento para a reprodução é reduzi-la a uma parte muito pequena. É como pensar que o drama de Tristão e Isolda poderia ser resolvido por um ginecologista. No drama de Tristão e Isolda está todo o humano, toda a paixão, a tristeza, o engano. Se entendermos a comida como a mera ingestão de material para a sobrevivência individual, estaremos a fazer algo similar.

Na história da filosofia, alguma vez a comida foi pensada com este nível de atenção?
Há alguns precedentes, alguns filósofos falaram um pouco da comida como um elemento interessante mas não foi um problema teórico até que Brillat-Savarin [gastrónomo francês, 1755-1826] começasse a reflectir sobre ele. Ainda não tem o estatuto teórico que adquiriu a sexualidade nos anos 60 do século passado, mas já há muitas aproximações filosóficas e antropológicas à cozinha e estou convencido de que ainda agora começou.

Continua, no entanto, a haver algum preconceito. Uma discussão sobre cozinha, gastronomia, comida, não é vista da mesma forma como uma discussão sobre política ou economia.
Sim, nos sentidos humanos, há uma espécie de hierarquia muito elitista, que vem de Aristóteles e que considera que o sentido da vista e do ouvido são os mais nobres e os outros de menor valor. As artes ligadas à vista e ao ouvido têm um estatuto arrogante, elitista e falta-nos uma reivindicação do paladar e do olfacto como ligados a temas que se podem considerar como arte. É o caso da comida. É preciso fazer uma certa revolução dos sentidos menores, com menos prestígio, para que este tema tenha o tratamento que merece.

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Andoni Aduriz e Daniel Innerarity. "Andoni e eu somos amigos há anos e escrevemos este livro de uma forma não intencional"

Porque é que esses sentidos foram considerados menores?
Provavelmente porque aparecem como os menos teóricos, os menos próximos da razão. A razão e a vista são bastante próximas, mais abstractas, e os sentidos relativos ao comer são mais materiais. Por trás disto, há toda uma revolução antropológica a fazer acerca do que é importante. Mas prossigamos com a analogia e pensemos nos séculos em que a sexualidade foi considerada como algo de pouca importância, banal, sem identidade filosófica.

Não podemos sequer dizer que privilegiamos os sentidos mais próximos dos animais, porque estes também têm visão e audição.
Creio que tem que ver com esse carácter abstracto, mais próximo do racional e mais distante do objecto. O ouvido, mas sobretudo a vista, são os que mais nos distanciam da objectividade. O que rodeia a comida é pura materialidade. Há que voltar a pensar a materialidade humana sem essa hierarquização das faculdades sensíveis herdada de Aristóteles.

Podemos dizer que houve uma intelectualização excessiva do pensamento e hoje estamos a assistir a uma…
… materialização.

O mexer na terra, o interesse sobre a forma como os alimentos crescem, o toque. Essa reaproximação tem que ver com uma necessidade actual?
Uma nova concepção da materialidade humana é um assunto muito revolucionário. Certos discursos conservadores falam de um materialismo imperante. Creio, pelo contrário, que às vezes estamos numa sociedade muito espiritualista no pior sentido da palavra, uma civilização que considera o seu humano separado do seu meio, achando que ele pode pensar-se sem esse contexto material. Esta revitalização do local é o que nos diz que não podemos viver fora de certos contextos. As alterações climáticas são muito eloquentes e estão a dizer-nos que precisamos de meios ambientes com uma certa temperatura, com certas condições de reprodução material. A consciência ecológica e os riscos ligados às alterações climáticas voltaram a despertar uma civilização que olhava para o sujeito humano como emancipado do seu meio material. Deste novo materialismo faz parte também o enobrecimento das coisas do comer.

Nos anos 60, esse interesse pelas questões da sexualidade não foi acompanhado por outros temas como a comida, por exemplo. Não foi uma época em que se pensasse muito a comida e, no entanto, é a importância dos sentidos que está em causa em ambos os casos.
Provavelmente porque o tema da sexualidade teve, a partir do Maio de 68, uma dimensão muito política e transgressora de valores e normas anteriores.

É quando as coisas assumem um carácter político que ganham uma nova importância.
Claro, por isso, a minha tese é que possivelmente estamos agora a descobrir a força política que têm os nossos hábitos de comer. Comendo, comemos o mundo. E podemos fazer política com o carrinho de compras. A nossa maneira de consumir, os nossos hábitos alimentares, se comemos sozinhos ou em companhia, com ordem ou desordenadamente. Deveríamos redignificar a força transformadora dos actos de conduta, das nossas microdecisões. Às vezes, pensamos como é difícil mudar o mundo, mas do mesmo modo que o #MeToo pode estar a mudar o mundo, as microdecisões de cada um de nós, de consumir de uma determinada maneira e não de outra, têm um potencial transformador da sociedade. É preciso uma politização das realidades ligadas ao comércio.

Porque a ideia do que é político muda nos diferentes momentos da História.
Totalmente. Ao longo da História, o que se considera político e o que não se considera foi mudando. Ao mesmo tempo, há uma ampliação progressiva do espaço do político. Cada vez há mais coisas que se re-politizam. No fundo, politizar significa que uma coisa que era considerada como dada pelo destino ou aceite por todos ou indiscutível passa a ser objecto de tematização geral. Passou-se com o corpo, com o estatuto da mulher, com o privado, pode acontecer também com a comida.

Nos seus artigos, fala com preocupação do estado da democracia.
É o meu tema central.

Neste momento, as coisas parecem estar a agravar-se. É como se já aceitássemos como uma inevitabilidade que a democracia está condenada a entrar num ciclo decrescente. A comida também tem que ver com a democracia, por exemplo em temas como quem controla as sementes e, portanto, o alimento. 
Sim, há muitos pontos de contacto. Um deles é a ideia de que temos de ganhar autodeterminação culinária. Isto significa, entre outras coisas, que temos de aprender a cozinhar para nós, que estamos a delegar demasiadas coisas noutros que cozinham para nós.
A ideia de produção própria tem que ver com a democracia. Tal como tudo o que tem que ver com a justiça alimentar, com a igualdade no acesso aos bens da alimentação, com uma melhor articulação entre o global e o local. A globalização foi entendida há 30 ou 40 anos como um nível supralocal, hoje pensamos que é preciso articular as coisas. Podemos falar da comida como um lugar de trabalho da democracia.

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Estamos também a pensar muito na inteligência artificial, no que faz de nós humanos, no que estamos a transferir para as máquinas, e há aí uma fronteira que tem precisamente que ver com os sentidos. As máquinas não podem saborear. Os sentidos ainda são uma coisa muito humana.
Muito material, muito pouco substituível. Defendo que a tecnologia, que me interessa muito, não resolve nem destrói problemas humanos básicos da existência. O relevante é como a inserimos num contexto social. Pensar que ela vai substituir o humano é puro determinismo. Escrevi para o El País um artigo chamado A Decisão de Siri. Vamos confiar todas as nossas decisões às máquinas? Não, mas faríamos bem em confiar muitas delas. Passámos de uma certa euforia de pensar que toda a tecnologia vai ser a grande solução a ter hoje uma visão particularmente negativa da tecnologia. É preciso equilibrar. A tecnologia pode fazer-nos prescindir de muitos trabalhos mecânicos, aumentar a produção de bens de consumo, incluindo a comida, mas isso tem de ser decidido com equilíbrio e por nós próprios.

É verdade que há muitas decisões que estamos a transferir, porque os algoritmos têm uma maior capacidade de resposta, mas isso é precisamente o contrário de recuperar os métodos de produção ou de cozinharmos nós mesmos. É abdicarmos disso para uma entidade que não é um Governo, uma instituição, nem sequer uma empresa, mas algo de mais difuso.
O que acontece é que as tecnologias mais sofisticadas incluem sempre, quando estão bem desenhadas, uma certa desobediência ao autor. Se todas as nossas tecnologias nos obedecessem demasiado, não funcionariam bem. O exemplo mais claro são os travões do carro, que nos obedecem salvo em alguns casos, por exemplo, de pânico, quando travamos a fundo, porque senão acabaríamos por nos matar. No desenho das tecnologias, temos de incluir não só controlo, mas também autolimitação.
Quando houve o acidente da German Wings, em que o piloto do avião se suicidou [provocando a queda do aparelho e a morte de 150 pessoas, em 2015], toda a tecnologia de segurança estava pensada para que o inimigo fosse exterior, como se pudesse ser unicamente alguém que entrasse na cabine. Não pensamos que às vezes nós somos os nossos piores inimigos. Temos de ter o controlo sobre os processos em que estamos implicados, mas esse controlo é mais eficaz quando inclui algumas limitações.

Voltando à questão da comida, há uma elite que vai aos restaurantes como o Mugaritz, de Andoni Aduriz, e gosta de reflectir sobre estas coisas. Mas nota-se algum cansaço relativamente a um discurso mais intelectual sobre a comida. Sente isso também?
A alta-cozinha não está feita para irmos lá comer todos e de forma habitual. Em primeiro lugar, porque não temos dinheiro para isso. Digo, e creio que Andoni está de acordo, que esses restaurantes são instituições didácticas. Não é preciso irmos todos à universidade para termos uma sociedade cada vez mais inteligente. De alguma maneira, as instituições de alta-cultura difundem o conhecimento no seu meio ambiente. Com a alta-cozinha, que é muito experimental e inovadora, cometeríamos um erro se pensássemos que se trata de comida para consumir quotidianamente. É como os desfiles de moda muito sofisticados — trata-se de marcar tendências. São instituições educativas, cuja justificação última é contribuir para a formação do gosto.
Se calhar, no tempo dos nossos avós, as pessoas não decidiam o que comer, isso era decidido pela estação ou as posses. Hoje há cada vez mais gente confrontada todos os dias com a decisão de o quê, como e com quem comer. E existirem instituições focadas na cozinha tem uma grande utilidade. Não para irmos lá, mas para que se difunda, se experimente, se criem novas formas de comer.
Entendo a pergunta, às vezes, há uma certa intelectualização, mas creio que isso se passa com todas as realidades humanas. Quando há uns anos, em Espanha, houve um treinador de futebol que começou a falar em termos filosóficos e chamaram-lhe “filósofo do futebol”, eu contemplei isso com absoluto cepticismo porque não me interessa nada a futebol, mas achei interessante ver como um tema se convertia em algo um pouco mais sofisticado do que dar pontapés a uma bola. Havia um certo nível de reflexão e eu gosto disso. Vi o mundo da cozinha intelectualizar-se e isso pareceu-me bem, mas agora há seguramente muita conversa sem interesse e, com a passagem do tempo, restarão apenas alguns discursos.

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Mugaritz/J. L. Lopez de Zubiria

Há pessoas para quem a reflexão é séria e outras que estão a seguir uma moda. No caso de Andoni, corresponde a uma verdadeira inquietação?
Sim, Andoni não está a seguir a moda, está a criá-la. Quando uma coisa lhe sai bem, deixa de a fazer. O que admiro nele e de certo modo me torna semelhante a ele é que, quando crê que já sabe uma coisa, dirige-se a outro sítio. Se num grupo humano és o mais inteligente, tens de ir a outro grupo onde és o mais estúpido, porque é aí que aprendes. Quando fizeres bem uma coisa, tens de ir para outro problema. É essa inquietação que nos mantém curiosos, despertos.

O momento da História em que nos encontramos é mais estimulante para um filósofo do que era há 20 anos, por exemplo?
É um momento apaixonante para a filosofia. Nunca vi na história da humanidade tantas transformações ao mesmo tempo. A nós, filósofos, interessa-nos fundamentalmente dois tipos de problemas: as coisas que já não são o que eram e as coisas que não são o que parecem. E numa cultura como a nossa, há muitos assuntos que têm que ver com isso.
Mas é muito inquietante para os nossos cidadãos que se vêem confrontados com temas que os angustiam e os deixam perplexos — o meu último livro chama-se precisamente Política para Perplexos. As pessoas que não têm a mesma tolerância à incerteza que nós, filósofos, temos podem não reagir tão bem.

Isso torna-o menos angustiado que outros?
Nós, filósofos, temos poucas vantagens competitivas. Mas fomos habituados pela nossa maneira de trabalhar a viver com um excedente de problemas que para outros seriam intoleráveis. Por isso há poucos filósofos — e não tem de haver muitos. [Søren] Kierkegaard dizia que se tornou filósofo quando se apercebeu de que toda a gente se dedicava a tornar a vida mais fácil para os outros e ele achou que tinha de haver alguém que fizesse exactamente o contrário.

E as pessoas não esperam dos filósofos sistemas fechados de explicação do mundo?
Podem esperar sentadas. A contribuição que podemos dar aos problemas do nosso tempo é formulá-los melhor.

Enquanto colectivo, estamos mais ou menos inteligentes?
Estamos numa sociedade que quando se organiza bem, quando está bem dirigida, pode ser mais inteligente que cada um dos seus membros individualmente considerados, podemos construir verdadeiros sistemas inteligentes constituídos por gente relativamente medíocre.
E podemos fazer exactamente o contrário: fazer com que gente muito inteligente quando se junta em vazios normativos, com culturas políticas torpes e sem regras razoáveis, actue de maneira muito estúpida. Esse é um dos grandes desafios do nosso tempo: sejamos mais inteligentes actuando em grupo, enquanto inteligência colectiva, e evitemos todas as situações colectivas de geração de estupidez pela simples agregação, desde as euforias que criam as bolhas financeiras, às estupidezes que cometemos quando entramos em pânico económico ou simplesmente quando se forma um engarrafamento automobilístico.
Estamos nesse tipo de bifurcação. Podemos ir por um caminho ou outro, e isso não depende de você e eu sermos inteligentes ou não, depende de a cultura, as normas e as regras serem inteligentes. Gosto de dizer que poderíamos prescindir das pessoas inteligentes e não aconteceria nada, mas não podemos prescindir dos sistemas inteligentes porque é aí que jogamos tudo.

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