Uma campanha em surdina

Quase ninguém, afinal de contas, tratou o momento como sendo de excepção. Foi como se os agentes políticos replicassem em três semanas o mesmo comportamento que seguiram perante a Lava-Jato, cada um tentando salvar a própria pele e de caminho obtendo um resultado inteiramente destrutivo para o conjunto.

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Eleitores na manhã deste domingo aguardam em fila para chegar à urna, Rio de Janeiro REUTERS/Sergio Moraes
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O candidato do Partido Social Liberal Jair Bolsonaro após a votação desta manhã. As últimas sondagens que Datafolha divulgou no sábado davam, com uma margem de erro de 2%, uma intenção de voto de 55% para Bolsonaro, contra 45% para o candidato do PT, Fernando Haddad EPA/ANTONIO LACERDA
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Uma rosa na mão do candidato do PT Fernando Haddad enquanto é rodeado por uma multidão após ter votado REUTERS/Nacho Doce
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Um dos locais de voto no Rio de Janeiro sob forte segurança REUTERS/Pilar Olivares

Por estranho que pareça a quem está fora do Brasil, a situação dramática que o país atravessa desde que Bolsonaro teve mais de 46% dos votos na 1.ª volta das presidenciais, no dia 7 de Outubro, não foi vivida numa atmosfera de urgência. O resultado eleitoral não provocou sobressalto ou entusiasmo: é como se o país, por antecipação, já se tivesse acostumado ao que o espera.

Entre os agentes políticos, cada um cuidou de si. Ciro Gomes, o candidato de centro-esquerda que ficou em 3.º lugar, passou as três semanas seguintes de férias em França, de onde mandou dizer que estava “muito cansado”. O antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, pressionado por intelectuais seus amigos que, de todo o mundo, lhe pediam para tomar posição, afirmou que não recebia lições de ninguém, e que o seu passado em defesa da democracia o desobrigava de prestar provas. O caso mais caricato ocorreu com o ex-governador do estado do Ceará, Cid Gomes, irmão de Ciro e um dos membros do seu círculo mais próximo, que em pleno comício a favor de Haddad disparou numa diatribe contra o PT, envolveu-se numa discussão com a plateia, e concluiu aos gritos: “Vão perder feio! O Lula está preso, seu babaca [basbaque]!” O episódio foi simbólico, não só por ter dado munição directa ao adversário, mas por mostrar com clareza que, num momento de semelhante dramatismo, a prioridade de cada um não era derrotar Bolsonaro.

Tendo dado a vitória do candidato da extrema-direita por garantida, cada um se posicionou, não em função da votação do dia de hoje, mas do que poderá vir depois. A pretexto da negociação de um eventual apoio crítico a Haddad, quase todos aproveitaram para redobrar as críticas ao PT, seguros de que o PT não podia revidar, pelo menos não naquele momento. O espectáculo chegou a ser indecoroso.

Considerada individualmente, a opção de cada um tem o seu elemento lógico. Fernando Henrique Cardoso terá calculado ser mais prudente não entregar de vez a Bolsonaro o campo do anti-petismo: se o flirt com uma figura tão despreparada se revelar um fracasso, quem sabe as camadas sociais que sempre apoiaram o centro-direita regressam ao regaço do PSDB? E quando os “mercados” descobrirem que Bolsonaro é uma aposta menos segura do que actualmente imaginam, de novo terão de procurar aliados no centro-direita tradicional. Para Ciro, com Lula definitivamente fora do cenário, não haverá outra liderança na esquerda mais bem colocada do que ele mesmo, quando Bolsonaro entrar em colapso. Haddad fez os discursos conciliatórios que podia fazer, mas há razões para suspeitar que o próprio PT talvez não tenha encarado a sua posição como assim tão desesperada. Afinal o partido foi, a grande distância, a única força que eleitoralmente fez frente a Bolsonaro, e tem em Lula um capital simbólico junto dos mais pobres que há-de sobreviver por décadas. As autocríticas do candidato do PT expressaram boas intenções, mas poucos compromissos específicos quanto a um futuro governo.

Abrindo portas a Bolsonaro

Quase ninguém, afinal de contas, tratou o momento como sendo de excepção. O cidadão assustado, que olhasse para cima à procura de referências, encontrou poucas para lhes servir de conforto. Houve excepções meritórias, claro, de indivíduos que agora não têm muito em jogo: Marina Silva, que na última semana de campanha tomou uma posição contundente contra o candidato de extrema-direita; Joaquim Barbosa, o prestigiado antigo presidente do Supremo Tribunal Federal, que apoiou Haddad no último momento; Alberto Goldman, antigo presidente do PSDB, que declarou que pela primeira vez na vida votaria no PT.

É uma traição reiterada, da parte do sistema político nascido da Constituição de 1988, ao cidadão que ainda acreditasse nele. Foi como se cada agente político replicasse num curto intervalo o mesmo comportamento que seguiu nestes horríveis quatro anos. Como perante o Lava-Jato, cada um tentou salvar a própria pele e infligir o maior dano possível ao seu rival político, e de caminho obteve um resultado inteiramente destrutivo para o conjunto, abrindo as portas a Bolsonaro.

O candidato da extrema-direita aproveitou a recta final para não deixar nenhumas dúvidas quanto à natureza da sua proposta. Na certeza da vitória próxima, atacou a imprensa e prometeu de forma taxativa a prisão ou o exílio para os que se lhe opuserem. Sem qualquer preparação técnica, experiência legislativa, ou disposição para o estudo, o candidato sabe que não poderá governar a não ser pela confrontação, criando constantemente inimigos contra os quais todas as armas são legítimas. A uma semana de votar, foi ele mesmo quem prometeu que o faria.

Bolsonaro será talvez o primeiro caso de um político a ganhar umas eleições sem sair de casa — literalmente. Os poucos encontros que foi tendo — o primeiro dos quais uma visita ao Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro — foram vedados à imprensa. Desde que há quase dois meses foi atingido por uma facada, não teve qualquer iniciativa de rua: na semana passada, usou o telemóvel para se dirigir a uma manifestação de apoiantes na Avenida Paulista. A sua campanha decorreu em surdina: não com bandeiras ou distribuição de panfletos, mas falando directamente aos eleitores, via WhatsApp, pelo telefone que cada um tem no bolso. Entretanto, há quase um mês e meio que o futuro super-ministro da economia, Paulo Guedes, não faz qualquer declaração pública, desde o dia em que esse “mago” que conquistou os “mercados” com as promessas de “reformas” caiu na franqueza de aventar a possível criação de um novo imposto, e foi proibido pelo seu candidato de voltar a abrir a boca.

A ideia de espaço público foi totalmente aniquilada: Bolsonaro não responde a perguntas de jornalistas, a não ser em entrevistas previamente combinadas com órgãos de informação que sejam do seu agrado. Também não participa em debates, e sequer se preocupa em arranjar pretextos plausíveis ou coerentes para não o fazer: primeiro disse que o seu estado de saúde convalescente não lho permitiria, e em seguida — talvez cansado de pedir aos médicos que lhe passassem falsos atestados — declarou que recusava debater com Haddad, porque o seu verdadeiro adversário é Lula. Na impossibilidade de receber o candidato da extrema-direita, a generalidade dos canais de televisão optou por também não entrevistar o candidato do PT, o que contribuiu para esvaziar ainda mais o ambiente de campanha. Mas a frustração e o desespero são tão grandes que é provável que essa ausência tenha sido vivida por uma grande parte da população como um alívio: quase como se não houvesse eleição.

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