Carta aberta a quem faz falsas acusações de abuso sexual

Esta carta destina-se a quem, de forma intencional, acusa outra pessoa de abusar sexualmente de uma criança.

As falsas acusações de abuso sexual a crianças existem. É uma realidade que não podemos ignorar e não adianta fazer de conta que não existem. Em primeiro lugar, e antes que vozes se levantem, clarificar que qualquer suspeita de abuso sexual consistente deve ser avaliada de forma rigorosa. Segundo protocolos de avaliação devidamente validados, evitando o risco de falsos negativos e falsos positivos.

Em segundo lugar, clarificar também que uma acusação de abuso sexual que é feita no contexto de um conflito parental merece a mesma atenção e rigor que qualquer outra. Os técnicos têm de pautar a sua intervenção por rigor e objectividade, evitando ideias pré-concebidas e expectativas que podem conduzir a processos de avaliação superficiais e enviesados.

Esta carta destina-se a quem, de forma intencional, acusa outra pessoa de abusar sexualmente de uma criança. Habitualmente, de um filho. Estamos, na maior parte das vezes, perante pais e mães (sim, quem faz as falsas acusações são homens e mulheres) em conflito, assumindo-se a criança como uma arma de arremesso. Uma forma de atingir o outro e de impedir contactos.

Estes pais são muitas vezes motivados pela zanga, revolta, desejo de vingança ou ainda receio de perder a sensação de controlo. Por vezes também, observam-se crenças relacionadas com a ideia de posse dos filhos, acreditando-se que estes são “seus” e que não precisam do outro progenitor. Neste contexto, podem surgir falsas alegações de abuso sexual que impedem, parcial ou totalmente, os contactos da criança com o progenitor acusado. Este impedimento pode durar alguns meses, anos ou até o resto da vida. Sim, o resto da vida. Porque mesmo quando os processos judiciais são arquivados e se conclui que não existem quaisquer evidências consistentes de abuso sexual, estamos perante muito tempo de afastamento. Meses ou anos em que a criança foi ajudada a interiorizar a ideia de ter sido sexualmente alvo de abuso. Criam-se resistências e um processo de rejeição que nem sempre é reversível. E o que dizer do estigma social? Será que alguma vez estes pais injustamente acusados se libertam do peso deste estigma? É que os rótulos não se arquivam com os processos judiciais.

Maria é uma adolescente [1], que escreve esta carta à sua mãe. “Tenho 16 anos e já sei pensar pela minha cabeça. E sei que acusaste o meu pai de abuso sexual, de propósito, para o impedir de estar comigo. Para me impedir de estar com ele. Sei que estavas muito zangada e revoltada, porque ele já não queria estar casado contigo. Sei que te sentias triste, sozinha e que te querias vingar de alguma forma. Sei que não desejavas o divórcio, que ainda o amavas e querias ao teu lado. Sei isso tudo, mãe. E até posso fazer um esforço para perceber isso. Mas isso não pode nunca justificar o que fizeste. Tinha apenas seis anos quando tudo começou.

“Lembro-me das vossas discussões e de ouvir muitos gritos. Lembro-me de ver o pai ir embora e não voltar para ao pé de mim. Lembro-me que o pai já não me lia as histórias antes de dormir. Lembro-me de não ter o pai nas festas de aniversário nem de final de ano. Lembro-me que o pai nunca me viu dançar nem ficar em pontas. Lembro-me que o pai nunca soube dos meus amores e desamores. Lembro-me também de ir muitas vezes ao médico, de falar com muitos psicólogos e, em todas as vezes, daquilo que me dizias: ‘O pai mexeu no teu pipi, não te esqueças que é isso que tens de dizer quando te perguntarem porque não queres ver o pai.

“Não, mãe, eu não me esqueci do que dizias. Como poderia esquecer algo que era dito tantas vezes? Como poderia esquecer uma coisa que me disseste sempre de forma tão veemente? E sempre cumpri aquilo que me mandaste fazer.

“Mas há uma coisa que eu esqueci. Uma coisa da qual não me lembro mesmo. Não me recordo de o pai, alguma vez, ter mexido no meu pipi de uma forma errada. Já se passaram muitos anos. Já falámos sobre isto várias vezes. Demasiadas vezes. O tribunal decidiu que o pai era inocente e que eu devia e podia estar com ele. Mas decidiu tarde de mais. Depois já era eu que não queria, eu que tinha medo, eu que não sabia o que fazer. Sei que já me pediste desculpas e perdão, que já choraste todas as lágrimas que tinhas para chorar. Mas também sei que, mesmo que te perdoe algum dia, isso não trará de volta o pai que eu perdi durante tantos anos. O tempo não volta para trás. O que eu perdi está perdido.”

[1] Testemunho fictício, baseado em relatos verídicos.

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