O legado de Cavaco

A mais importante revelação é no fundo uma confirmação – a de que Cavaco Silva é um intransigente defensor da democracia e que, enquanto Presidente, se norteou por esses valores.

Cavaco Silva tem todo o direito e toda a legitimidade para escrever memórias sobre a sua actividade política passada e sobre os cargos que desempenhou de ministro das Finanças, de primeiro-ministro e de Presidente da República. Mais: Cavaco Silva tem-no feito com regularidade. Escreveu dois volumes sobre o período em que desempenhou os mandatos à frente do governo (Autobiografia Política) e lança agora o segundo volume das suas memórias enquanto ocupante do primeiro órgão de soberania (Quinta-Feira e Outros Dias).

Não há em Portugal a tradição de os ocupantes de cargos políticos e de Estado escreverem memórias. Mas isso não é impeditivo de que quem quiser o faça. É mesmo de saudar aqueles que, como Cavaco Silva, assumem o risco de escrever sobre o seu exercício do poder. É importante quer para a informação dos cidadãos que viveram os tempos recentes que são relatados nessas memórias, quer para quem em décadas futuras venha a fazer a análise histórica do tempo em causa.

O que Cavaco Silva revela no II volume de Quinta-feira e Outros Dias é a sua visão dos acontecimentos de que foi protagonista enquanto Presidente da República. O livro revela algumas novidades ainda não escritas antes: Passos ameaçou demitir-se na crise da TSU em 2012, Paulo Portas recusou que o CDS ocupasse o Ministério das Finanças após a demissão de Vítor Gaspar e o PCP manifestou a António Costa disponibilidade para integrar o Governo em Outubro de 2015. Mas mostra, sobretudo, o pensamento do ex-Presidente em cada momento do segundo mandato. Cavaco apresenta a argumentação e os motivos que o nortearam em cada atitude e decisão, alguns já conhecidos, mas agora desenvolvidos e contextualizados nesta obra. E se há conclusão que transparece é a da sua coerência de pensamento.

A mais importante revelação da leitura do II volume de Quinta-feira e Outros Dias é no fundo uma confirmação — a de que Cavaco Silva é um intransigente defensor da democracia e que, enquanto Presidente, se norteou por esses valores. É quase comovente constatar a forma como quem ocupou o lugar de Presidente da República explica a defesa que fez, durante o exercício dos seus mandatos, da Constituição, bem como do valor essencial e incontornável do Tribunal Constitucional no sistema político português.

Uma atitude de respeito pelas regras democráticas do Estado português que foi diligentemente afirmando — mesmo quando em confronto com o Governo de Passos — na procura de garantir que não era posto em causa o princípio democrático da igualdade de tratamento de todos pelo Estado, concretamente em relação à equidade fiscal, à equidade perante a austeridade e ao respeito pelos compromissos assumidos pelo Estado para com os cidadãos.

Ao longo das suas memórias, Cavaco Silva vai deixando recados e fazendo apreciações sobre o carácter político de outros protagonistas com que se cruzou no seu segundo mandato em Belém. Sejamos claros: ao longo das mais de quinhentas páginas não é revelado nenhum segredo de Estado. Algumas das apreciações que Cavaco faz podem ser consideradas ácidas, contundentes até, sobretudo vindas de alguém que teve um perfil absolutamente institucional no desempenho dos mandatos. Logo, têm gerado polémica.

Mas não há nada que impeça o ex-Presidente de o fazer, assim como nada o impede de revelar factos e conversas que manteve com outros actores políticos e institucionais. Os visados podem não gostar, quem lê pode não concordar. Mas Cavaco tem toda a legitimidade para o fazer. E revela coragem pessoal e política ao fazê-lo. Aliás, na minha opinião, só é pena que Cavaco seja o único político português preocupado em escrever memórias, através das quais o país de hoje e o do futuro conheça o seu ponto de vista e porque fez o que fez quando ocupou o lugar cimeiro da hierarquia de Estado em Portugal.

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