Jair Bolsonaro explicado aos democratas

Andar a proclamar diariamente a nossa superioridade moral e intelectual em relação aos ignorantes que votam Bolsonaro não é, com certeza, o caminho.

A propósito da situação no Brasil, Pedro Marques Lopes afirmou no Eixo do Mal: “Nunca uma ditadura em caso algum resolveu algum problema a uma população. Nem tirou da miséria, nem deu melhores serviços de saúde, nem melhor educação. Nunca! Isso nunca aconteceu!” Era tão bonito que fosse verdade. Infelizmente, é mentira. Cuba proporcionou excelentes serviços de saúde à sua população. O Chile de Pinochet teve uma época de grande fulgor económico. A RDA e a URSS educavam o povo e eram excelentes no desporto (como nunca mais foram após deixarem de ser ditaduras). O Estado Novo resolveu vários problemas à população portuguesa nos anos 30. E a China, que não é propriamente conhecida pelos seus pergaminhos democráticos, é a maior potência mundial emergente.

A lista poderia continuar. Aquilo que as democracias liberais efectivamente provaram, no longo prazo, é que a mistura da livre iniciativa com mercado livre, regulado mas não controlado pelo Estado, com o apoio de uma justiça eficaz e independente, e escoradas em todos os pesos e contrapesos que compõem os melhores sistemas políticos, conseguem atingir um nível de riqueza e de felicidade para as suas populações que não têm paralelo com qualquer outro regime. Isso não significa, contudo, que as ditaduras não possam ser pontualmente mais eficazes do que as democracias a resolver problemas imediatos, ou que as democracias não percam terreno para as ditaduras quando se mostram incapazes de garantir a segurança dos seus cidadãos e manter um módico de justiça social.  

Dinheiro no bolso e paz nas ruas – sempre que isto existe, as democracias nada têm a temer; quando isto deixa de existir, não é o amor à liberdade de expressão e à separação de poderes que vai impedir as pessoas de se atirarem para os braços de um qualquer Bolsonaro, sobretudo quando elas têm como argumento – em boa medida justo – que aquilo que existe já não é uma democracia saudável e em pleno funcionamento, mas somente uma caricatura de democracia, gravemente ferida na sua legitimidade. No filme À Bout de Souffle, Jean-Luc Godard põe na boca de Jean Seberg esta citação de William Faulkner: “Entre a dor e o nada, eu prefiro a dor.” Parece masoquismo, mas muitas vezes é apenas a necessidade desesperada de gritar que se está vivo. Entre a dor de um regime autocrático e ordeiro, e o nada de uma democracia paralisada pela violência e pela corrupção, os brasileiros preparam-se para escolher a dor.

Ainda por cima, os novos regimes autocráticos não dispensam certas formalidades da democracia, e por isso o seu combate torna-se ainda mais difícil. As palavras “ditadura” e “fascismo” devem ser usadas com a consciência de que elas já não significam o mesmo que no passado. Embora ninguém duvide que um Trump ou um Bolsonaro andariam de braço estendido na Alemanha dos anos 30, nenhum deles propõe hoje a suspensão da democracia, e até prometem o contrário: dar-lhe justo cumprimento, restituir-lhe a pureza perdida, afastar as oligarquias que a estão a sufocar. E as pessoas acreditam nisso, e agem de uma forma que quebra toda a lógica da comunicação política pré-Trump – dão um desconto significativo às barbaridades que são ditas pelo candidato e não acreditam que ele venha a praticar metade das maldades que promete. Como enfrentar isto? Não é fácil. Mas andar a proclamar diariamente a nossa superioridade moral e intelectual em relação aos ignorantes que votam Bolsonaro não é, com certeza, o caminho.

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