As águas não são todas iguais, palavra de water sommelier
Manuel Antunes da Silva é o único water sommelier português. Trabalha na Unicer e diz que devemos “pensar na água como um bem alimentar e não só como algo para matar a sede”.
Quando chegamos à Unicer, em Leça do Balio, no Porto, somos recebidos numa sala onde, sobre a mesa, estão dispostos alguns copos de pé e, à sua frente e perfiladas segundo uma ordem, quatro tipos diferentes de água. “As águas não são todas iguais e as pessoas têm que perceber isso”, diz Manuel Antunes da Silva, de 52 anos. Formado em Geologia, mas a trabalhar com águas minerais há já 27 anos, Manuel é o primeiro e o único water sommelier nacional, certificado pela Doemens, uma empresa alemã.
Desde 2002 que Manuel trabalha no Super Bock Group, onde é, neste momento, director técnico das concessões hidrominerais. A formação em Geologia deu-lhe a base para a compreensão de todos os processos hídricos, o trabalho profissional e conhecimento das águas deram-lhe a vontade de querer aperfeiçoar e afinar a própria destreza na prova de água, o que o levou até à Alemanha para, ali, se certificar como water sommelier, na academia Doemens.
A história que nos é ensinada desde cedo de que a água não tem cor, cheiro ou sabor acaba por ser questionada e contestada por quem a prova e é especialista na área. As diferenças são notáveis e têm a ver com a sua origem, ou seja, com a forma como a própria natureza trabalha. “Cor, nenhuma delas tem”, “cheiro também não, ou alguma coisa estaria mal”, mas sabor sim, aliás, “aroma”. Para fazer a comparação, são-nos dadas a provar, primeiro, duas águas “lisas de baixa mineralização”, como lhes chama Manuel, ou seja, em linguagem corrente, águas sem gás. “A diferença é muito pequena porque são de baixa mineralização”, apontou Manuel. “Tomou café? Não? Então, à partida, vai correr bem.” De seguida, provamos duas águas gasocarbónicas. “Sentiu a diferença? Não tem mais gás, sente-se mais.” Para um leigo na matéria será difícil notar a diferença, mas a função de Manuel é a de perceber e distinguir os diferentes componentes numa água.
Como se sente, afinal, o sabor da água, se, no fim de contas, sempre fomos ensinados que a água não tem sabor? “Sente-se no final, por causa dos aromas que ficam na boca. Quando inspiramos, depois de a beber, é que vem algum do sabor do cheiro, é o aroma que sentimos”, aponta o especialista.
“Eu acho que o fundamental [num water sommelier] é perceber todas estas questões da água, que são todas diferentes; desenvolver a capacidade de conseguir encontrar as particularidades de cada água e cada grupo de águas. Apesar de não serem todas iguais, haverá águas com características e aplicações semelhantes. É importante desenvolver a afinação da capacidade de saber destrinçar entre os diversos grupos de águas e saber adequá-los a cada tipo de consumo”, diz Manuel Antunes da Silva. A formação em Geologia levou-o a perceber que todas as diferenças encontradas nos diversos tipos de água se relacionam com algo bem mais profundo: a forma como a água se comporta no seu ciclo. “Como a água vai lá abaixo, circula e recebe todos os minerais. As pessoas apercebem-se depois da diferença de uma água para a outra e é evidente que a fábrica, natureza, tem que funcionar de maneira diferente no fabrico de uma e outra.”
Foram estes processos que apaixonaram Manuel e o fizeram querer aprofundar ainda mais o seu conhecimento. “Sempre trabalhei na parte das captações, na gestão das explorações, e isso ainda faz parte do meu trabalho”, reflecte. “Ao longo do meu percurso, conhecer e provar as águas, quer nas fábricas quer nas captações, fez com que fosse ficando interessado nesta questão da prova”, acrescenta. A sua função de water sommelier pode resumir-se desta forma: um profissional que tem em conta todos os processos que envolvem a água desde o início do seu ciclo hidrológico até chegar às captações para ser, então, engarrafada. A partir daí, na prova de água, o profissional será capaz de distinguir todas as particularidades a que a água é votada.
Será fácil comparar a função — Manuel chama-lhe assim mesmo, função e não trabalho, porque acarreta muito mais do que um simples momento de prova de água — que o water sommelier desempenha à da prova de cerveja ou vinho. No entanto, tanto o vinho como a cerveja carregam sabores e aromas mais fortes. A prova de água torna-se, por isso, num processo longo de treino e aprimoramento do paladar e dos restantes sentidos. “Não é algo que aconteça de um dia para o outro”, reflecte Manuel Antunes da Silva.
E a prova de água é fundamental para consciencializar os consumidores sobre cada uma das águas disponíveis e os seus componentes. “A intenção é a de tentar despertar o interesse das pessoas sobre o que é a água”. “Da mesma maneira que [elas] sabem saborear um vinho”, também podem saborear uma água, desde que adquiram “o gosto”.
Além disso, um water sommelier deve conseguir harmonizar todos os elementos de uma refeição — há, aliás, vários espaços de restauração que têm cartas de águas. “Este é um trabalho que demora, porque não há uma regra que diga que esta água serve para aquele prato ou aquele vinho. Por isso, as coisas têm que ser experimentadas e temos que ter a certeza que uma coisa bate certo com a outra”, explica Manuel Antunes da Silva. “Não pode haver nenhum elemento da refeição a sobrepor-se a outro, não podemos ter uma água que anule o sabor do vinho”, conclui. E acrescenta que “este é um processo que tem que ser desenvolvido espaço a espaço, para o tipo de comida de cada local”. Por exemplo, a acompanhar a tradicional feijoada deve estar uma “água mais encorpada” — gaseificada —, de modo a contrabalançar todos os ingredientes mais “pesados” do prato.
Um dia, Manuel gostava que o consumo de água fosse feito tendo em conta os seus componentes, como acontece “com outros produtos alimentares”, através da consulta do seu rótulo. “Acho que o nosso mercado se foca muito pouco na água e mais no líquido”, atira. O que é que isso quer dizer? “Se quero beber, vou beber alguma coisa que me mate a sede e não me preocupo com o que é essa água: se é natural ou se é tratada”, aponta. “As pessoas devem pensar na água como um bem alimentar e não só como algo para matar a sede.”
Texto editado por Sandra Silva Costa