Quando o design entra num bairro também o pode transformar

No Bairro do Lagarteiro, no Porto, Cecília Carvalho testou ferramentas de comunicação capazes de despertar a mudança. Uma ode ao design livre de tecnologia que não deixa ninguém de fora. E pode ser o início de uma outra narrativa.

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Cecília Carvalho Adriano Miranda

Na pergunta provocatória do assistente social da junta de freguesia de Campanhã cabia todo o combate de Cecília Carvalho. “Mas o que é que o design tem a ver com os pobres?”, perguntou José António Pinto quando a designer lhe pediu ajuda para a investigação da sua tese de doutoramento. Cecília queria estudar os contributos do design para a transformação em contextos desfavorecidos a partir do Bairro do Lagarteiro, no Porto. E isso soava estranho ao assistente social a quem a Assembleia da República deu, em 2013, a medalha de ouro da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Cecília Carvalho sorri. Aquela conversa, em Fevereiro de 2015, foi o início de tudo — e depois de cerca de ano e meio no terreno e da tese de doutoramento ter sido defendida em Julho, e aprovada por unanimidade, José António Pinto já não questiona a relevância do design na área social. E Cecília já não é a designer que era. A ideia já fazia parte da sua cartilha de princípios, mas depois do Lagarteiro ganhou certezas fechadas a cadeado: “Se não for junto das pessoas, o design e a investigação nesta área não valem a pena. É tempo desperdiçado.”

A entrada no bairro fez-se vagarosa. Cecília Carvalho acompanhou “Chalana” — como é conhecido o assistente social — em alguns domicílios e nos atendimentos no bloco 3 do Lagarteiro. Foi percebendo quem poderia desafiar a integrar o projecto. Ganhou um gabinete no mesmo bloco do bairro e, pouco a pouco, a confiança de quem habita aquela geografia oriental. Em Utopia nas margens: o papel do design na co-criação de alternativas num contexto de exclusão social, arquitectaram-se estratégias de comunicação capazes de despertar a mudança de hábitos alimentares entre esta população. A ideia, explica a designer de 41 anos, é continuar a aplicar as ferramentas desenvolvidas na tese. E isso pode ou não acontecer tendo a alimentação como tema. Pode ou não ser no Lagarteiro. “Aquilo que identifiquei em diagnóstico não tem a ver apenas com o Lagarteiro, mas com a sociedade actual.”

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No "livro de histórias", Cecília apresentava-se e explicava o que queria investigar com a sua tese Adriano Miranda

Ana Lúcia Lencastre puxa pela memória com o auxílio do “livro de histórias” escrito por Cecília. “Já foi há tanto tempo”, comenta sorridente quando desafiada a recordar o dia em que aceitou integrar a investigação da aluna da Universidade do Porto. “Aceitei logo e fui a única que foi quase sempre [às sessões]”, comenta orgulhosa. Naquelas páginas, uma espécie de guião de abordagem aos habitantes e um convite à participação, Cecília Carvalho contava que também ela havia crescido num bairro, o Parceria Antunes, numa tentativa de quebrar possíveis “cerimónias” e “desconstruir a figura de autoridade” a que poderiam associá-la. E cumpria uma dupla viagem: mostrar como tinha ali chegado e explicar até onde queria ir. 

O plano tinha raízes na sua tese de mestrado. Ao trabalhar com pessoas com deficiência motora e mergulhar na etnografia, novas luzes iam surgindo. Cecília atou laços de amizade, envolveu-se. E percebeu da maneira mais dolorosa, quando perdeu uma amiga, que a deficiência era apenas a face mais visível do problema daquelas pessoas. Depois veio uma reportagem no PÚBLICO a denunciar um SOS na zona pobre do Porto. “Muita gente acha que para fazer trabalho na área social é preciso ir para muito longe”, aponta. E ela, moradora em Campanhã, a geografia retratada no artigo, sempre quis demonstrar o contrário: “Existe tanta coisa que se pode fazer muito perto.”

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A investigadora pediu às participantes que criassem cenários representativos das suas cozinhas e hábitos alimentares Cecília Carvalho

A investigação foi realizada com um grupo primário de sete mulheres, entre os 18 e os 43 anos, e envolveu três fases de trabalho: individual, grupal e comunitário. Para desenvolver e testar ferramentas de comunicação, Cecília elegeu o tema da alimentação, “um assunto recorrente nos atendimentos”. Famílias com falta de dinheiro para comer (dois dos agregados familiares entrevistados tinham 50 cêntimos diários por pessoa para alimentação), um serviço de apoio deficitário, elevados índices de doenças corelacionadas com hábitos alimentares. O problema “transversal ao bairro” cor de tijolo erguido em 1973 era um bom ponto de partida para o trabalho — ainda que a ideia fosse criar metodologias válidas para qualquer matéria e contexto.

Quando Cecília foi para o terreno, o Lagarteiro “era um lugar crítico, como dizia a iniciativa Bairros Críticos, em período crítico”. E os “constrangimentos financeiros” de um país “ocupado” pela Troika eram um teste para o seu trabalho: “Como desenvolver uma linguagem que permita mobilizar uma comunidade sem investir muito dinheiro e tendo de lidar com grandes dificuldades de literacia?”

Os relatos das participantes sobre os hábitos alimentares possibilitaram um diagnóstico “relativizado” — ainda a necessitar de validação de especialistas na área médica ou da nutrição — do cenário do bairro. Apesar da existência de carências graves, Cecília notou “pouca influência do orçamento” nos hábitos dos entrevistados. “Tem mais a ver com aspectos do design do que com aspectos financeiros”, concluiu. E isso instigava a criação de alternativas “com criatividade e usando as circunstâncias e os meios para fazer diferente”.   

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A família Lencastre, no bloco 11 do Lagarteiro Adriano Miranda

Ana Lúcia e a irmã Bruna, 24 e 20 anos, trazem sacos de compras nas mãos. Foram a casa da mãe, bloco 11 do Lagarteiro, para reencontrar Cecília Carvalho. A mais velha está prestes a ser mãe, a mais nova tem uma menina de sete meses. Os hábitos alimentares eram para a família Lencastre um assunto resolvido — mas pelas piores razões. “O que tinha para comer comia, não pensava muito nisso”, admite Ana Lúcia. E esse assunto está longe de estar arrumado.

A semente plantada foi outra. “Um dos meus objectivos era fazê-las perceber que a realidade delas é o princípio de alguma coisa”, sublinha a designer portuense. Mas o próprio envolvimento das participantes era um braço de ferro permanente. A nota da investigadora no seu diário, em Junho de 2015, dá conta disso: “O fim-de-semana trouxe-me preocupações. Estou com receio que as taxas de participação não se compadeçam com as necessidades do projecto.”

Acabou por acontecer. Após o desenvolvimento individual, onde cada participante respondeu a um inquérito exploratório sobre o universo de consumo e hábitos do agregado familiar, gerou-se a discussão. E dessas conversas entre as sete mulheres, passou-se para a fase comunitária, com as participantes a transformaram-se em investigadoras. Ajudaram a construir os questionários e levaram-nos porta a porta. Viver no Lagarteiro influencia a forma como se alimentam, questionava a investigadora.

— Olha, aqui no Lagarteiro não há nada!
— E o que há, é caro.
— Só há as lojas (...) um saco de arroz é para aí um euro. Vamos ao Continente...
— 60 e tal cêntimos.
— 60 e tal cêntimos, 50 e tal cêntimos... A gente quer comer qualquer coisa, vem aqui à loja e perde logo a vontade de comer!

Os diálogos reproduzidos na tese de Cecília Carvalho são, em si mesmos, uma dissertação. Se a pergunta é o que significa uma alimentação saudável, alguém comenta:
— Não comer gorduras, ingerir certas e determinadas vitaminas, porque a gente precisa mais de umas do que de outras. Evitar muitos hidratos de carbono. Mas eu como. Cecília, para mim, o que quiseres comer, tu vais comer. Por isso, deves meter aí uns parênteses: grávida!
— Se tivesses que dizer à tua filha o que é uma comida equilibrada, o que lhe dizias?
— Filha, não sejas como a mãe! (risos)
— Davas-lhe sopa?
— Claro! Vou-lhe dar todos os dias... de manhã à noite! Meio dia e jantar! (...) A alimentação de uma criança é diferente de um adulto, não é?

Plantaram-se dúvidas, discutiram-se opções. Construíram-se cenários 3D das cozinhas, mapearam-se os locais onde faziam compras. Usou-se o trabalho manual como ferramenta para a análise, como apontou Cecília no seu diário, também repleto de desenhos: “De novo, os trabalhos manuais dão azo à conversa que flui entre o que ela queria falar e o que eu lhe ia perguntando. (...) Ao sair disse-me ‘é bem melhor [estar aqui] do que ficar em casa a olhar para as paredes’.”

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Algumas das ferramentas utilizadas durante a investigação Cecília Carvalho

Para todo o processo, várias ferramentas foram idealizadas: a “.ppt analógica” foi absorver o registo a um Power Point tradicional e transferiu-o para uma folha de papel, numa lógica de “engenharia inversa”; à “BOSa”, matriz desenvolvida na área do marketing, foram adicionadas novas perguntas para uma reflexão mais incisiva; a “Arena das Necessidades”, construída com post-its, tornou mais “sintéticas e elegíveis” as respostas obtidas através da ferramenta anterior, de uma forma “muito visual”.

Para Cecília Carvalho, “a intervenção do design foi capaz de gerar um melhor sentido de comunidade e emancipação colectiva”. E esse é o grande triunfo. Por um lado, a desconstrução do design enquanto “manifestação estética e elitista” (um exercício que também de dentro do ofício seria útil, diz). Por outro, a queda da ideia de que tecnologia é sinónimo de evolução. “As potencialidades do design não estão associadas às coisas mas às atitudes e a uma consciência crítica e criativa”, observa para logo explanar uma teoria: “É perante situações de extrema austeridade que provavelmente se revelam as mais notáveis manifestações do design.”

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O Lagarteiro, construído em 1973, fica na zona oriental do Porto, junto à fronteira com Gondomar Adriano Miranda

No Lagarteiro, a designer diagnosticou um apetite latente de comunidade e acção colectiva de mão dada com uma incapacidade em acreditar na mudança. Uma aparente contradição, não tão aguçada se no Lagarteiro se conhecer uma população veterana em sofrimento. Desacreditada de si mesma. A comunhão do design com desenvolvimento comunitário ainda causa “estranheza” a muitos. Mas talvez um fio se tenha atado — ou pelo menos para lá se caminhe. Não é por acaso que Cecília Carvalho cita na sua tese Boaventura Sousa Santos.  Se “muitos dos nossos sonhos foram reduzidos ao que existe e o que existe é muitas vezes um pesadelo”, diz, “ser utópico é a maneira mais consistente de ser realista no início do século XXI”.

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