A arte de conservar a fruta em açúcar

Marmelada, doce de maçã, de malagueta, de figo-da-Índia, de laranja amarga. Apesar de o ritmo da confecção dos doces acompanhar a época das frutas, não haverá estação do ano que melhor combine com eles do que o Outono. Fomos à procura daqueles que, na cozinha, agarrados às panelas, repetem as palavras “tradicional” e “produção artesanal”.

Foto
André Rodrigues

É dia de marmelada em Cinfães. Rodeadas de memórias, Fátima, Filipa, Carmo e Rosa, batas xadrez, facas e passe vite nas mãos enérgicas, fazem tudo “à antiga”. Aqui, é um ponto de honra ser “feita por pessoas”. Gabam-se disso. Só não usam o mel como naquele texto do século I que menciona “marmelos confitados com mel” — o mais parecido com uma receita de compota que figura num dos 37 volumes da História Natural, do autor romano Plínio, o antigo. A verdade é que em vinte séculos pouco mudou na arte de conservar a fruta em açúcar para aproveitar a generosidade dos frutos do Verão e do Outono para apreciar durante todo o ano. “Ricos marmelinhos este ano”, ouve-se na cozinha que em tempos foi o palheiro da casa dos pais de José.

A origem das compotas remonta a tempos antigos, quando as estações do ano comandavam as produções e os ciclos agrícolas e a população se preparava para o Inverno, armazenando mantimentos. Eram procuradas as frutas mais suculentas e as mais frágeis, de casca fina. “Dada a grande variedade de frutas e o seu indiscutível valor alimentar, devem elas constituir um óptimo recurso para valorizar ementas”, escrevia nos anos 1950 Maria Olímpia Areal no seu Doces Familiares, aproveitando para destacar a sua “fácil digestibilidade” e apontando os “doces de fruta” como “um recurso económico e prático para todo o ano” sempre que preparados “nas épocas de abundância de frutas baratas”.

Hoje, para os mais criteriosos, ainda seria possível seguir o seu “Calendário dos Doces de Fruta”: laranjas e tangerinas em Janeiro e Fevereiro, cerejas e morangos em Maio e Junho, framboesas, groselhas e ruibarbos em Julho, alperces, melões e ameixas em Agosto, figos, melancia, pêssegos, pêras, tomates e uvas em Setembro, marmelos, maçãs, castanhas e toranjas em Outubro e Dezembro.

Foto
André Rodrigues

Fomos à procura daqueles que, na cozinha, agarrados às panelas, repetem as palavras “tradicional”, “produção artesanal”, “pequenos lotes” e “à antiga”, aqueles que tratam a fruta e as compotas, as marmeladas, as polpadas, as uvadas e as geleias com mimos e diminutivos, as pessoas mais ou menos gulosas que no frasco ou na tigela gostam que se perceba a consistência do fruto, os que cortam a fruta aos cubinhos, que a ralam no passe vite, que nos mercados, onde vendem os seus doces, escabeches e biscoitos, têm sempre as bancas mais animadas. E descobrimos que, sem descurar as frutas tradicionais, a paleta de compotas é cada vez mais extensa e variada e que serve não apenas o pão e as sobremesas, mas todos os momentos gastronómicos do dia.

Num manuscrito baptizado de Notas de Cozinha de Leonardo da Vinci, do artista renascentista, entre receitas — a maioria salgada, já que os alimentos feitos com açúcar eram pouco presentes na dieta quotidiana europeia daquela época devido ao alto preço do doce ingrediente — destaca-se a de marmelada de couve que era feita com mel. A receita era da cozinheira de Leonardo que, apesar de garantir que jamais provaria a iguaria, afirmava ser ela ideal para acompanhar pratos de carne. Até ao século XV outras frutas são citadas à mesa, conservadas doces e para além do marmelo: peras, amêndoas e até mesmo nabos, cenouras e erva doce.

Perguntem à Paulinha pelo preparado de laranja amarga, à Daniela pelas suas cinquenta variedades (alho, cebola e cogumelos incluídos), ao João e à Joana pelo doce com bolinha no canto superior direito ou ao José António e à Patrícia pelas figueiras-da-Índia que plantaram num terreno onde antes crescia vinha.

Sugerir correcção
Comentar