Danças Ocultas pelo mar que leva ao Brasil

Depois da feérica experiência do disco ao vivo de 2016, o quarteto de concertinas de Águeda quis experimentar outras ondas e acabou por aportar ao Brasil. Com Jaques Morelenbaum na produção e Carminho, Zélia Duncan e Dora Morelenbaum por convidados.

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Há um momento, na vida de um músico ou de um grupo, que se pensa já ter atingido o ponto mais alto ou a perfeição possível. Foi isso que aconteceu ao grupo de concertinas Danças Ocultas, de Águeda, depois de lançarem em 2016 um soberbo disco ao vivo a que chamaram Amplitude, gravado na Casa da Música (Porto) e no CCB (Lisboa) com vários convidados: Filarmonia das Beiras, Carminho, Dead Combo e Rodrigo Leão. Para trás ficara um lote já invejável de discos, numa progressão qualitativa: Danças Ocultas (1996), Ar (1998), Travessa da Espera (2002), Pulsar (2004) e Tarab (2009), além de uma colectânea chamada Alento (2011) e da participação do grupo num disco da jovem cantora e violoncelista brasileira Dom La Nena (o EP Arco, de 2014). A par destas gravações, o grupo foi refinando a sua abordagem ao instrumento, distribuindo as várias “vozes” musicais pelos quatro, à semelhança de um quarteto de cordas clássico: Filipe Cal ficou com as harmonias, Artur Fernandes e Francisco Miguel ficaram com as melodias e Filipe Ricardo toca concertina baixo, que de protótipo passou a instrumento fabricado por encomenda, com um fole que se abre ao tamanho de dois braços abertos.

Gravar no Rio de Janeiro

Com Amplitude, chegados ao seu auge, continuaram a compor mas sem vislumbrarem novo rumo. “Há cerca de dois anos este material ainda estava demasiado em bruto. Com uma angústia muito grande da nossa parte, porque estávamos com alguma dificuldade, a nível dos arranjos, de chegar a soluções diferentes daquelas a que já tínhamos chegado com o repertório anterior.” Perceberam, então, que precisavam de uma “intervenção artística externa.” Com uma particularidade, diz Artur Fernandes: “Teria de ser alguém que preferencialmente não nos conhecesse, a nós e aos instrumentos.” Havia uma razão forte para isso, como sublinha Filipe Cal: “No disco ao vivo, a orquestra amplificava os nossos instrumentos, desde logo pelos arranjos. E desenvolvemos ali um determinado conceito sonoro que, sem pretensiosismos, é muito difícil fazer melhor do que aquilo. Com aquela fórmula, estava feito. Melhor não conseguimos. E agora?”

Foram, por isso, pensando em nomes, em possibilidades. “Quando se falou do Jaques Morelenbaum, por ter a ver com o tipo de música que ouvimos, lançámos o convite e ele aceitou.” Como se tinham candidatado a um apoio da GDA, e ele foi concedido, isso permitiu-lhes viajarem até ao Rio de Janeiro. “O que nos abriu logo uma possibilidade maravilhosa, que foi trabalharmos com músicos locais.” A sugerir novos horizontes.

Jaques Morelenbaum tinha ouvido no Youtube “uma coisa ou outra” dos Danças Ocultas. Por isso, quando recebeu o convite “já sabia a que tipo de coisa vinha”, diz Artur. Filipe recorda que Jaques trabalhara com Carminho e esta participara no disco ao vivo dos Danças Ocultas, havia aí uma ligação: “Ela já lhe tinha falado de nós.” E a participação de Carminho no espectáculo que deu origem ao disco ao vivo agradou-lhes tanto que os levou “ao impulso de escrever uma música especialmente para a voz dela.” Foi O teu olhar (com letra de Tiago Torres da Silva) e é uma das três canções, num total de onze temas, na sua maior parte instrumentais, que surgem em Dentro Desse Mar. As outras são As viajantes, com letra de Carlos Rennó, cantada por Zélia Duncan, e Dessa ilha, com letra de Arnaldo Antunes e a voz de Dora Morelenbaum, filha de Jaques.

Um ano de preparação

“Estivemos quase um ano, desde o primeiro contacto após o convite ter sido aceite, até às gravações, em Dezembro de 2017, em trocas de mensagens, envios das partituras que tínhamos e trocas de ideias sobre encaminhamento estético e tipo de convidados. Ele foi depois ouvindo, sugerindo e o disco foi sendo construído.” À ida do grupo para o Brasil as coisas ainda não estavam muito fechadas. “Estávamos até com alguma ansiedade”, diz Artur. Mas tudo fluiu sem contratempos. Trabalharam seis horas por dia no estúdio e, à medida das necessidades, Jaques ia contactando os músicos: Marcos Suzano, Paulo Braga, Lula Galvão, Rogério Caetano, Luís Barcelos, Marcelo Costa, Robertinho Silva, Tiago Abrantes e David Feldman, além do próprio Jaques no violoncelo. Somaram-se, assim, às concertinas do grupo e ao violoncelo de Jaques, percussões, guitarra eléctrica, bandolim, cavaquinho, violões de 6 e 7 cordas, clarinete, piano e piano eléctrico.

“Foi, obviamente, um conjunto de contactos privilegiados, mas acima de tudo uma ideia do que cada músico podia fazer em determinada música. Foi esse o grande trabalho de produção dele”, diz Artur Fernandes. Quem ouvir o disco, numa sequência que o grupo quis pautar “pelo tipo de andamentos e de tonalidades”, entra e sai a dançar: Azáfama, a abrir, raia o fandango e Sorriso, a fechar, tem o pulsar de um baião. Pelo meio, surgem temas mais contemplativos ou mais sincopados, com algumas soluções surpreendentes. “Soldado, por exemplo, tem uma progressão que não é a típica da MPB ou do chorinho, é muito mais afro. Entendemos que, como a música tem uma sequência harmónica repetitiva e insistente, a referência seria uma coisa mais do tipo Olodum, mais baiana.”

Com um conceito estético, sonoro, desenvolvido ao longo dos anos, foi com estranheza que o grupo recebeu o resultado das gravações. “Com o Tó Pinheiro Silva, no início, e depois com o nosso técnico Nuno Rebocho, fomos desenvolvendo um conceito com um baixo profundo, redondo e aveludado e com uma equalização das nossas concertinas a cortar nos médios. E chamámos a atenção ao Jaques, repetidamente, que gostaríamos que o grave fosse equalizado nesse sentido. Ora quando recebemos as primeiras versões das misturas, levámos literalmente às mãos à cabeça”, diz Artur. “Estava muito mais sobre os médios”, acrescenta Filipe. “Uma semana depois, demos a mão à palmatória”, conclui Artur. “O trabalho do Jaques está fenomenal. Pois se nós queríamos trabalhar com o Jaques e com músicos brasileiros, o que esperávamos? Esta mistura pelos médios leva a música para um lado muito mais leve. E afinal era isto que nós queríamos!”

Dentro Desse Mar vai ser apresentado ao vivo em Coimbra, no Convento São Francisco (no dia 31, às 21h30), seguindo-se Lisboa (Teatro Tivoli BBVA, dia 3 de Novembro, 21h30), Aveiro (Teatro Aveirense, dia 4, 21h) e Porto (Casa da Música, dia 21, às 21h).

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