Dina, se Deus quiser, a coisa melhora

Sendo defensores da estrita separação Estado-Igrejas, isso não significa que ambos devam viver de costas voltadas.

Há já alguns anos, durante uma aula, perguntava aos alunos um dado ponto da matéria e fui-me deparando com respostas de um Paulo, de um Tiago e de um Pedro. Comentei que só nos estavam a calhar nomes de apóstolos e, tendo sido um Pedro a responder em último lugar, exclamei: “tu és Pedro e sobre ti edificarei a minha igreja”.

No intervalo que se seguiu, ouvi, no bar da Faculdade, estudantes a comentarem: “ele deve ter sido seminarista, ou é mesmo padre”. Regressados à sala, brinquei com a situação e disse-lhes que não tinha passado por nenhum seminário e que não era ministro de nenhuma religião.

Aproveitei para lhes dizer que a nossa tradição ocidental – e a portuguesa em particular – eram de transfundo judaico-cristão e que, por isso, para crentes e não-crentes, o conhecimento elementar da Bíblia e de outros textos sagrados era essencial para compreendermos várias dimensões da nossa vida comum, também no âmbito do Direito Penal. E tenho-o repetido várias vezes, em diferentes ocasiões.

Vem isto a propósito de uma “minipolémica” em que as sociedades pós-modernas são pródigas e que, tendo a desvantagem de nos afastar do essencial, comporta a virtualidade de nos lançar num debate capaz de ir além do epifenómeno. E este foi uma crítica na imprensa escrita a uma forma de despedida que Dina Aguiar usa há décadas nos seus programas: “até amanhã, se Deus quiser”. Que não o poderia dizer, por a RTP ser serviço público de televisão e dever manter-se laica e equidistante de todas as confissões.

Ripostou-se que a expressão não tem só o sentido religioso estrito que lhe é atribuído e que se vulgarizou, sendo usada mesmo por quem é ateu ou agnóstico, da mesma forma que, em alturas de aperto, se clama “graças a Deus” ou “Deus queira” (“oxalá”, que é o aportuguesamento de inshallah, produto de séculos de domínio árabe da Península). Ora, trabalhando eu numa universidade pública, provavelmente também deveria ser objecto de processo disciplinar, lembrei-me. Que venha ele.

Não oferece dúvidas a ninguém que, depois da promiscuidade entre Estado e Igreja Católica durante o Estado Novo, a Revolução de Abril abriu uma nova etapa na relação com as várias igrejas e com aquela que, segundo as estatísticas, é a mais representativa no nosso país. Por isso se alterou a concordata em 1975, de modo a permitir o divórcio nos casamentos católicos e, em 2004, um novo tratado entre Portugal e a Santa Sé estabeleceu uma diversa forma de relacionamento entre os dois sujeitos de Direito Internacional.

É curioso notar que, tanto quanto sei, com a designação de “concordata”, apenas subsistem as italiana (também designada concordata lateranense), a espanhola, a portuguesa, a polaca, a com São Marino, a brasileira, a com a República Dominicana e com alguns Estados alemães, sobretudo do Sul católico. Muitos outros tratados existem, mas sem esta designação que tem atrás de si um lastro histórico de séculos. No preâmbulo da nossa lê-se: “considerando as profundas relações históricas entre a Igreja Católica e Portugal e tendo em vista as mútuas responsabilidades que os vinculam, no âmbito da liberdade religiosa (…)”.

Também ninguém duvida que o art. 41.º da Constituição garante a liberdade religiosa, o que significa que todas as confissões devem ser tratadas em plano de igualdade, que o Estado não tem uma religião, que não deve promover qualquer delas e que toda a actividade estadual é não confessional, desde logo no domínio da educação (art. 43.º). Tudo isto garantido, em pormenor, por uma Lei da Liberdade Religiosa (2001) que, para o que aqui importa, no seu art. 8.º, al. d), garante a todos o direito de “exprimir e divulgar livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento em matéria religiosa”. Complementada esta, ainda, por legislação específica em matéria de registo de pessoas colectivas religiosas (não católicas). Por outro lado, a Lei da Televisão (2007) obriga todos os operadores ao respeito pelos direitos fundamentais, de entre os quais a liberdade de religião e o princípio da não confessionalidade do Estado, de modo ainda mais carregado no serviço público de rádio e televisão. O mesmo decorre do vigente contrato de concessão celebrado em 2015 entre o Estado e a RTP, SA.

À memória acodem vários pronunciamentos de tribunais constitucionais europeus, permitindo-me destacar, por ter sido um leading case, a decisão do alemão que, em 1995, no chamado “caso dos crucifixos”, entendeu que a obrigação de as escolas públicas do Land (católico) da Baviera ostentarem cruzes violava o “princípio da neutralidade estatal no que concerne às diferentes religiões e confissões”, rechaçando ainda a ideia que este símbolo era típico da civilização ocidental, pelo que se havia dessacralizado, considerando mesmo que o contrário constituiria “uma profanação da própria cruz”.

A laicidade e a não confessionalidade do Estado são conquistas civilizacionais de que, tirando franjas populacionais extremistas, ninguém quer abdicar. Tal não significa que o Estado não deva colaborar com todas as confissões em assuntos de interesse comum e todos conhecemos a relevantíssima actividade social, assistencial, cultural e educativa que cada uma delas, à medida da sua dimensão, desempenha no nosso país.

É reconhecendo isso mesmo que existe uma concordata com a Santa Sé e não com outras religiões: não significa que ter mais fiéis é ser mais importante, mas a realidade impõe-se inelutavelmente ao legislador – a diferença de intervenção concreta em sectores que são tarefas fundamentais do Estado por esta religião justifica um tratamento mais favorável. E, que saiba, nunca se pôs em causa a constitucionalidade da concordata.

Por outras palavras: sendo defensores da estrita separação Estado-Igrejas, isso não significa que ambos devam viver de costas voltadas e, como sempre em matéria de direitos fundamentais, a concordância prática entre a liberdade de expressão e de religião e a não confessionalidade do Estado implica que o uso de expressões como a de Dina Aguiar não vulnere o núcleo essencial da laicidade de um serviço público de televisão.

Coisa diferente seria fazer-se proselitismo em programa da RTP, sendo certo que esta – e bem, aliás, de acordo com a lei – disponibiliza (na 2) um espaço de divulgação às confissões presentes em Portugal, em que o tempo se divide de acordo com a sua representatividade. E também não consta que isto seja um problema. Tanto mais que dispomos de uma Comissão para a Liberdade Religiosa composta por representantes de várias confissões e presidida pelo muito competente Vera Jardim.

Num século que supostamente seria do fim das religiões, o vazio que muitos de nós sentimos nas nossas vidas, aparentemente tão preenchidas com múltiplos afazeres profissionais e sociais, tem demonstrado o contrário – a busca pelo transcendente está em alta. E é natural num mundo cada vez mais confuso e perigoso, neutro em matéria de valores, em que os fins justificam os meios e em que a “compadriocracia” substitui a meritocracia. Num mundo em que não temos tempo nem pachorra para nos aturarmos e em que, por isso, nos anestesiamos com antidepressivos e ansiolíticos, em que somos números, temos de produzir muito e bem, temos de ser os melhores no trabalho, no círculo de amigos, na vida familiar, na amorosa, na cama.

Graças a Deus que ainda vai havendo algum bom-senso, o dom mais mal distribuído no mundo. Quando esse sal da vida foi distribuído, muita gente estaria fechada na casa-de-banho ou em despensas. É pena. Mas se Deus quiser, a coisa melhora.

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