A serpente no Planalto: o eterno retorno do fascismo

No maior país de língua portuguesa, deixaremos de vir para a rua denunciar este terrível acontecimento?

Em O Eterno Retorno do Fascismo, Rob Riemen enuncia algumas das teses que tantos outros intelectuais (de Manuel Castells e Slavoy Zizek a Chomsky, de Habermas a Peter Sloterdijk, de Ian Kershaw a Roger Chartier e Peter Burke) igualmente corroboram. Há dias, um manifesto internacional assinado por inúmeros pensadores, artistas, ensaístas, historiadores, professores, fez chegar (a quantos, na verdade? E sobretudo no Brasil...) o repúdio por a mais que provável eleição (como Hitler, em 1933) de Bolsonaro...

Nacionalismo, autoritarismo, homofobia, racismo, censura, belicismo, delação, manipulação dos media para efeitos de propaganda e doutrina, enfraquecimento das instituições democráticas (Tribunais, Ministério Público, Escola e Universidades), apelo ao ódio e à violência, desrespeito pela diferença, discriminação absoluta, fomento de um discurso populista e assente na demagogia; aliança com poderes obscuros ancorados no interesse da Igreja Evangélica (Edir Macedo é um dos principais apoiantes de Bolsonaro e é Macedo o dono da TV Record, canal que funcionará para o capitão como a Fox News para Trump), um exacerbado moralismo hipócrita, eis o retrato fiel de Jair Bolsonaro e dos que o acompanham. Estes sinais, que igualmente identificamos em Trump, Putin e Duderte, na nova Itália da extrema-direita; que ouvimos nas palavras e vemos nas acções de Orban e pressentimos no irracionalismo do “Brexit”, deveriam ter fortalecido a resistência das democracias. Foi a indiferença e o individualismo que nos conduziram a este precipício e, como na década de 1930, aqueles que deveriam defender as liberdades e a dignidade (palavra-chave para o ressurgimento dos regimes livres e humanistas) viraram as costas aos povos e, escudados nos seus lugares de poder e de supostos inimputáveis, julgam estar livres do que aí vem... Não estão.

Servindo-se da Democracia e seus fracassos, Bolsonaro irá eliminar o sistema eleitoral, defenderá a existência dum partido único, destruirá direitos e garantias dos trabalhadores, e, como lembra Rob Riemen, sem uma elite intelectual e massa política impolutas, acabará por encaminhar o Brasil para um modo de vida onde só a ignorância e a superficialidade, o capitalismo mais desenfreado e a corrupção de Estado poderão imperar.

Pondo em primeiro lugar os interesses do empresariado (a FIESP e o agronegócio, sedentos de destruir a Amazónia para explorar as suas incalculáveis riquezas), as coordenadas por que se rege o programa do candidato do PSL são de fácil leitura para quem não tenha desprezado a História. Estamos perante a vitória de um sistema ideológico global que, desde Reagan e Thatcher, à Terceira Via de Blair, ao primado da economia e da mentalidade estatística dos governos "liberais" ou dos populismos de Esquerda, destruiu a linguagem, o pensamento e a acção política. O ódio aos intelectuais serviu, um pouco por todo o mundo, para defender o primado da opinião. Daí à simpatia que merecem frases de Trump na América profunda, às sentenças de morte e terror pronunciadas por Jair ou Maduro, Putin ou Le Pen, foi um passo. O homem comum, sem escola e ressentido, está sedento de novas formas de paternalismo que o façam sentir mais seguro. Está sedento de vingança e acabará sempre por condenar quem pensa e promove a dúvida, quem faz distinções e compreende que a Humanidade é diversidade. O seu raciocínio é este: se és elitista não és democrata e nós – porque não somos fascistas (é este o engodo) – condenamos quem problematiza, quem pergunta e quem agita os espíritos.

Uma globalização pobre em referências histórico-culturais, refém dessa nova Minerva – a Tecnologia (a tese é de Habermas); uma globalização baseada num sistema educativo que no Ocidente e nos países pró-ocidentais conduziu à diversão e ao desconhecimento da Cultura, ao menoscabo da Filosofia, da Música e da Poesia, à banalização dos sentimentos, tudo reduzindo ao lucro e ao resultadismo mais nefando, esse é o real em que estamos atolados. Eis porque Nietzsche estava certo: o niilismo roubou-nos a possibilidade de nos elevarmos acima da animalidade. Bolsonaro obedece apenas a essa animalidade, a única lei que conhece é a lei dos instintos primários. É urgente que não só os intelectuais, mas toda a sociedade civil brasileira – e o mundo – actuem em conformidade com os tempos que se avizinham. Convém, para que conste, saber que Bolsonaro admira Cel Brilhante Ustra, torturador da Ditadura Militar (1964-1985) e que é ele a serpente que do Palácio do Planalto irá destilar o seu veneno. Com Trump e outros usurpadores da Democracia, o que está em causa é a dignidade humana, como bem disseram Chico Buarque e Caetano Veloso numa manifestação pró-Hadddad, a única escolha possível, um académico culto, um homem justo.

Se o PT errou – e errou – não podemos esquecer um facto simples: os 87% de aprovação de Lula aquando o seu primeiro mandato; as 17 universidades que se criaram; os diversos programas de inclusão social; a profusão de escolas técnicas e um sistema de quotas para negros e índios, o acesso à educação e o histórico facto de cerca de 35 milhões de brasileiros terem sido retirados da miséria através do "bolsa-família". Se, como disse Millôr, o problema do Brasil é ter "muito passado pela frente", que lições teremos de aprender ainda para que esse passado não se faça presente? Que moral terá o mundo se a serpente chegar ao Planalto? Com que armas teremos de nos defender dos novos tiranos? E Portugal? No maior país de língua portuguesa, deixaremos de vir para a rua denunciar este terrível acontecimento?

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