O regresso do monstro puritano

Sendo Michael Myers uma ideia, faz sentido que volte em 2018, época em que voltam ideias que julgaríamos mortas.

Para “carpenterianos”, em primeiro lugar, mas também para quem não o seja
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“Tudo o que sei sobre o Mal, aprendi-o em Bowling Green”, dizia John Carpenter referindo-se à cidadezinha do Kentucky onde cresceu. O seu Halloween de 1978 era o filme que mais directamente exprimia esse Mal escondido na vulgaridade da América rural ou suburbana, e Michael Myers a mais plena figuração dele. A sua indestrutibilidade, que alimentou sequelas sobre sequelas (com que Carpenter já nada tinha a ver e que nada tinham a ver com Carpenter), estava já contida no filme original: mais do que um corpo, Myers era (é) uma ideia. Representava a crueldade castradora do puritanismo americano, e a sua vingança sobre a liberdade sexual das raparigas americanas dos anos 70 — o que é toda a história e toda a moral do Halloween de 1978.

Sendo Michael Myers uma ideia, faz sentido que volte em 2018, época em que na América e no resto do mundo também voltam ideias que julgaríamos mortas. A inteligência desta sequela, visível no argumento e na construção narrativa, está em saber tornar-se pertinente no contexto actual sem perder a relação com o original. Convém dizer que não é um projecto totalmente apócrifo: Carpenter tem um crédito de “executive producer” (como Jamie Lee Curtis, que retoma a personagem de Laurie Strode), terá sugerido dicas como “consultor criativo”, e participou no trabalho sobre a banda musical, que retoma e varia sobre a partitura que compôs para o original (algo que não é nada de somenos: o minimalismo electrónico de Carpenter está cheio de personalidade, mesmo se aqui — porque David Gordon Green é só David Gordon Green — a música nunca seja o batimento cardíaco do filme, e tenha um emprego bem mais convencional).

Mas falávamos de inteligência e pertinência. Inteligente é, por exemplo, o pormenor de o filme nos introduzir à história a partir de uma perspectiva “humanista”: parece, durante algum tempo, que os protagonistas vão ser o par de psicólogos que quer “compreender” a mente de Michael Myers, e o trata, na visita à prisão-hospital psiquiátrico, como uma criança problemática, até perceberem da pior maneira que não há ali nada a “compreender”, que aquilo não é uma pessoa, é o Mal. E pertinente é a forma como a história se joga atirando os homens para fora (como no original) e ampliando a galeria de figuras femininas: Laurie Strode já é avó, e é na aliança da avó, da filha e da neta que se tem que se fazer frente a Myers — aqueles planos finais que põem três gerações de mulheres a enfrentar o monstro masculino, irracional e violento, constituem talvez a primeira expressão cinematográfica minimamente poderosa (porque ínvia, não ilustrativa) do “tempo do #metoo”. Claro que David Gordon Green não é, de todo, Carpenter, e a sensatez que podemos reconhecer ao projecto não tem um equivalente à altura no seu sentido de mise en scène, com demasiadas cenas filmadas de maneira banal, sobretudo na parte final (quanto mais próximo do clímax mais o filme se arrasta). Mesmo assim, parece-nos obra visível e interessante, para “carpenterianos”, em primeiro lugar, mas também para quem não o seja.

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