Artes visuais: colecções em suspenso, Lisboa e Porto tentam dar o exemplo

Uma carta dirigida ao primeiro-ministro fez um retrato preocupante do estado das artes visuais no país e da incorporação de obras de artistas portugueses nas colecções públicas. O PÚBLICO foi atrás desse retrato e concluiu que há instituições que não fazem compras há mais de dez anos e um museu nacional sem autonomia para aquisições. Entretanto, Lisboa e Porto têm programas próprios para apoiar a produção artística.

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O Museu do Chiado, que expõe com regularidade artistas portugueses, não compra de forma sistemática há pelo menos dez anos gmw guilherme marques

O estado "comatoso" em que se encontram as colecções públicas de arte contemporânea em Portugal foi denunciado recentemente numa carta que mais de 200 artistas enviaram ao primeiro-ministro. António Costa recebeu de imediato os seus representantes em São Bento e anunciou um programa a dez anos para comprar arte portuguesa. Mas a medida, que começará a ser aplicada no próximo ano com uma dotação inicial de 300 mil euros, deixa por resolver muitos problemas, dizem os signatários, sublinhando que em Portugal a lei de mecenato “nunca funcionou de forma correcta” e que continuam a não existir uma colecção ou um museu públicos onde se possa ter acesso, a título permanente, ao que os artistas nacionais produziram nos últimos 40 anos.

É verdade que a Culturgest já não faz compras para sua colecção há dez anos? E quanto é que gasta, afinal, a Direcção-Geral das Artes (DGArtes) com as artes visuais? O Museu Nacional de Arte Contemporânea reforça com regularidade as suas colecções com obras recentes dos artistas portugueses ou não tem dinheiro para isso? E as autarquias de Lisboa e Porto, que papel têm tido no estímulo aos artistas?

Desde que o PÚBLICO dirigiu estas e outras perguntas às entidades competentes, caiu o ministro da CulturaLuís Filipe Castro Mendes foi substituído por Graça Fonseca, ex-secretária de Estado da Modernização Administrativa – e foi apresentado um Orçamento do Estado que prevê para 2019 um aumento de 12,6% da dotação do Ministério da Cultura (501 milhões de euros) face a este ano.

Com um reforço previsto de 6,6 milhões de euros, a DGArtes será precisamente o organismo tutelado pela Cultura cujo orçamento regista maior aumento percentual (29,6%). Mas que parcela desse aumento será canalizado para as artes plásticas? Continuarão os artistas plásticos a ter razões para acusar esta direcção-geral de trabalhar para as artes de palco e reclamar uma agência independente?

De acordo com o Ministério da Cultura (MC), em 2018 “os apoios da DGArtes às artes visuais duplicaram face a 2017, de 622 mil euros para 1,236 milhões" (o valor, ainda "provisório", é "o mais elevado dos últimos nove anos") – montante que representa apenas 5,4% do orçamento total desta direcção-geral. O PÚBLICO não conseguiu aferir o peso percentual das artes plásticas na fatia deste orçamento que se destina especificamente aos apoios às artes: procurou fazê-lo junto do MC que, não dispondo desse dado, respondeu com 12 quadros de apoio em que é virtualmente impossível navegar, informando ainda que, no plano da internacionalização, o investimento na Bienal de Veneza foi este ano de 434 mil euros.

Na carta dirigida ao chefe de Governo, os artistas garantiam: “Oitenta por cento do orçamento da DGArtes cabe tradicionalmente às companhias de teatro, dança e ‘interdisciplinaridade’ (astúcia inventada para drenar apoios até aos 90% através da modalidade ‘artes de palco’ — que abarca pintura, escultura, performance, fotografia e mais ofícios). Os dez por cento que ficam para as artes visuais, música, bandas e associações culturais regionais de todo o tipo são ainda canibalizados pela arquitectura e pelo design — e derivados — há mais de 20 anos.”

Direito à memória

Mas Rui Chafes, José Pedro Croft, Ana Vidigal, Paulo Nozolino, Adriana Molder, João Pedro Vale, Ana Perez-Quiroga, João Queiroz, Fernanda Fragateiro, Julião Sarmento, Albuquerque Mendes, José de Guimarães, Sofia Areal e os restantes signatários não estão apenas preocupados com a subalternização das artes plásticas em termos orçamentais. Um dos pontos-chave da longa carta que dirigiram ao primeiro-ministro incide no facto de as colecções públicas terem deixado de comprar obras de artistas portugueses, sobretudo as feitas nos últimos dez ou 15 anos. Isso é verdade para o acervo reunido pelo Estado a partir de 1976 – conhecido como Colecção SEC (Secretaria de Estado da Cultura) –, mas também para o do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa.

Alguns poderão contra-argumentar que o Chiado, cuja colecção, sobretudo a partir da década de 1980, está extremamente dependente de doações e depósitos, tem feito algumas aquisições nos últimos anos, mas fá-lo-ão esquecendo ou omitindo o facto de essas compras terem acontecido de forma pontual, sem qualquer estratégia sustentada. Foi assim com as obras de Augusto Alves da Silva, José Luís Neto e Júlia Ventura compradas à coleccionadora Isabel Vaz Lopes, depois de esta ter feito saber que tencionava retirar do museu uma série de peças que ali tinha deixado em depósito. 

Ao que o PÚBLICO apurou, há pelo menos dez anos que o Museu do Chiado não dispõe de um programa de aquisições estruturado, com verbas atribuídas. Quando peças importantes para a narrativa desta colecção nacional aparecem no mercado, o museu pede à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que o tutela, que as compre – às vezes é bem-sucedido, outras não. Nalguns casos é o montante em causa que dita o insucesso, noutros é a burocracia que não permite dizer “sim” em tempo útil. Nos últimos anos perdeu-se a oportunidade de adquirir, por exemplo, obras muito significativas de artistas como Fernando Lanhas (1923-2012) ou Pedro Cabrita Reis.

“É absolutamente incompreensível que o Estado tenha deixado de comprar os artistas portugueses”, diz ao PÚBLICO o crítico e historiador de arte Bernardo Pinto de Almeida. “Quando isso acontece, os privados demitem-se também das suas responsabilidades, porque é ao Estado que cabe dar o exemplo. É assim que acontece em Inglaterra, na Alemanha, em Itália, em Espanha… Em Portugal as instituições praticamente não compram e, quando o fazem, não compram arte portuguesa.”

Afirma Bernardo Pinto de Almeida que, em meados dos anos 90, havia ainda uma “política mínima de aquisições” que permitia aos artistas alimentarem expectativas, mas que a partir de 2000 houve um “abandono progressivo” da obrigatoriedade de as instituições coleccionarem portugueses. Com a chegada da troika, o Estado entendeu ter em mãos uma “boa desculpa” para não comprar: “Dizia-se ‘não há dinheiro’ e pronto. Ora o que não há é estratégia. E este não fazer nada é também uma forma de política. Uma política baseada na ignorância.”

Para Pinto de Almeida, o que está em causa é o direito dos artistas portugueses à memória e à representação. “Se esta política do nada fazer continuar, daqui a 20 anos não haverá memória da arte portuguesa que se fez entre 2000 e 2020.” Quando, no futuro, o Estado quiser corrigir as lacunas que a ausência de estratégia impôs às suas colecções, terá de gastar muito mais dinheiro, garante o autor de Arte Portuguesa no Século XX – Uma história crítica. “Artistas como Carla Filipe, Noé Sendas e Miguel Branco têm já alguma visibilidade internacional, mas continuam a não estar devidamente representados nos nossos museus. Quando decidirmos comprá-los, serão muito mais caros do que são hoje.”

Outro reflexo da “ausência de atenção à arte portuguesa em geral”, acrescenta este crítico que esteve ligado a instituições como a Fundação de Serralves e o Museu Berardo, é a falta de apoios à internacionalização. “Vemos chegar o [artista britânico de origem indiana Anish] Kapoor ao Porto [Serralves] em camiões de luxo forrados a ouro e temos de perguntar: e de cá para lá, o que é que vai? Zero ou perto disso. A maior parte das exposições de artistas portugueses no estrangeiro deve-se praticamente em exclusivo ao esforço dos próprios artistas.”

O exemplo das autarquias

Sara Antónia Matos, directora das Galerias Municipais de Lisboa, é mais optimista. Defende que tem havido “um esforço considerável” das instituições para apoiar a produção de novas obras e que esse esforço não se circunscreve às aquisições. Para esta curadora que está à frente de um programa que inclui vários espaços – com destaque para a Cordoaria Nacional, o Pavilhão Branco do Museu de Lisboa ou a Galeria Quadrum, que reabriu recentemente depois de ter recuperado o aspecto original dos anos 1970 e 80, quando funcionava como um verdadeiro laboratório experimental para a criação portuguesa –, o importante é garantir, em primeiro lugar, que os artistas têm condições para trabalhar.

“Tentamos sempre que as nossas galerias não sejam meros espaços de acolhimento de exposições já feitas e que sirvam para alavancar o trabalho dos artistas, para que eles avancem, para que criem coisas novas, e isto em várias fases da carreira”, diz Sara Antónia Matos. A galeria que a Câmara de Lisboa tem na Rua da Boavista está reservada a artistas emergentes (Alice dos Reis e Maria Trabulo, por exemplo), o Pavilhão Branco aos de “média carreira” (João Marçal ou Mariana Silva); a Cordoaria Nacional a retrospectivas de artistas que, por algum motivo, não foram ainda programadas por outras instituições, como as de Pedro Chorão (2017), Paulo Quintas (2018) e Rui Sanches (agendada para 2019).

A par destes apoios à produção ancorados em exposições, que funcionam como “encomendas”, a autarquia abre ainda concursos para a concessão de dezenas de ateliers – “medida  fundamental para garantir que os artistas têm bons espaços de trabalho numa altura de grande especulação no mercado imobiliário e de arrendamento” – e garantiu, no último triénio (2016-2018), 250 mil euros para aquisições destinadas ao seu Núcleo de Arte Contemporânea. “Não está ainda definido”, no entanto, se este investimento vai continuar nos próximos anos, esclarece a directora das Galerias Municipais de Lisboa.

A Câmara do Porto, por seu lado, anunciou em Abril de 2017 que passaria a dispor de um orçamento anual de 100 mil euros para comprar obras de arte contemporânea no âmbito do Programa de Aquisição da Colecção de Arte Municipal. O objectivo é revitalizar e tornar visitável um acervo que conta com cerca de milhar e meio de obras, mas que estava há muito estagnado e no qual a presença de artistas contemporâneos se reduzia a um pequeno núcleo de peças vindas do legado da Fundação Eugénio de Andrade.

Este novo programa de aquisições, que integra um projecto mais amplo com várias linhas de apoio às artes, o Pláka, “privilegia a documentação da prática artística do Porto” através da compra de obras recomendadas à autarquia por um comité de especialistas constituído por Francisco Laranjo, Gabriela Vaz-Pinheiro, João Magalhães, Luís Pinto Nunes e Pedro Álvares Ribeiro. Até aqui coube a este núcleo acompanhar e avaliar os projectos artísticos apresentados na cidade ao longo do ano, já que só podem ser escolhidas obras que tenham estado expostas em galerias do Porto. De acordo com o gabinete de imprensa da autarquia, deverá ser agora constituído um novo comité para que o projecto seja retomado em Janeiro.

Berlin (2013), uma prova de gelatina de prata sobre alumínio do fotógrafo Paulo Nozolino, três acrílicos sobre papel da série Thumbnails e Modelos, de Eduardo Batarda, e ainda obras de Ana Santos e Fernanda Fragateiro são algumas das peças já compradas.

Estão também indicados para aquisição trabalhos de Francisco Tropa, André Cepeda, Emmanuel Nassar e Pires Vieira, bem como duas obras da dupla João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. Quando somar o custo destas peças ao das anteriormente adquiridas, a autarquia terá já esgotado o orçamento anual de 100 mil euros previsto neste recém-lançado programa de aquisições.

Colecção CGD em suspenso

Noutras instituições com expressão nacional, mesmo nas que desde a sua fundação assumiram a responsabilidade de incentivar a produção contemporânea portuguesa, o panorama também não é animador, queixam-se os artistas.

Se é verdade que a Fundação Gulbenkian continua a contar com 500 mil euros de orçamento anual para aquisições (de portugueses e estrangeiros), também é verdade que o Museu Berardo e a Caixa Geral de Depósitos (CGD)-Culturgest não fazem compras há pelo menos dez anos.

Contactada pelo PÚBLICO, a CGD-Culturgest respondeu através do seu gabinete de comunicação, confirmando, desde logo, que não faz compras para o acervo há precisamente uma década: “Por questões conjunturais, as aquisições estão suspensas desde 2008, mas a Culturgest continua a zelar pela gestão, divulgação e conservação das cerca de 1800 obras de arte da Colecção CGD.”

Além da responsabilidade de conservar o que já tem neste acervo que começou a ser reunido em 1983 com um foco na arte portuguesa – a partir de 1993 esse foco estreitou-se, concentrando-se na produção posterior à década de 80, à qual se juntou, sete anos mais tarde, a oriunda de Moçambique, Brasil, Angola e Cabo Verde –, a Culturgest compromete-se a apoiar a produção de “obras novas, especificamente concebidas para os projectos expositivos”. Foi assim, por exemplo, no caso dos projectos apresentados desde 2016 na Culturgest Porto, da autoria de Jonathan Saldanha, Tatiana Macedo, Henrique Pavão, Salomé Lamas e João Penalva.

Entre as fundações que recebem apoios do Estado há uma que tem responsabilidades acrescidas na área das artes plásticas contemporâneas – Serralves. Em 2018, e segundo dados do MC, recebeu quase 4,3 milhões de euros, dos quais 500 mil se destinam ao fundo de aquisições. com Luís Miguel Queirós

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