"Estamos tão presos ao mundo actual que achamos que precisamos de moeda"

Robin Teigland, uma académica que segue a bitcoin desde o início, acredita que a tecnologia pode ser revolucionária, mas não como uma forma de dinheiro electrónico. "Temos de ter cuidado e não levar demasiados conceitos do mundo antigo para o potencial mundo novo."

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Norte-americana Robin Teigland dá aulas na Stockholm School of Economics e divide-se entre a Suécia, os EUA e Portugal ANDREIA PATRIARCA

No final de 2008, foi publicado na Internet um artigo que descrevia uma nova forma de dinheiro electrónico. Assinado por Satoshi Nakamoto – que ainda hoje ninguém sabe quem é –, aquele artigo fez nascer a bitcoin, a moeda digital que esteve na base de um frenesim especulativo no ano passado.

A bitcoin assenta numa tecnologia chamada blockchain. É um sistema engenhoso que permite fazer e receber pagamentos sem que seja necessária uma entidade central de confiança, como um banco, a registar todas as transacções. A invenção de Nakamoto surgiu numa altura em que a crise financeira estava em velocidade de cruzeiro, pouco após a falência do banco Lehman Brothers e quando crescia a desconfiança face aos sistemas financeiros tradicionais.

Nos anos que se seguiram, a blockchain serviu para muitas outras moedas virtuais. Foi também usada para criar sistemas que registam transacções e aplicada a sectores, como o transporte de mercadorias em cargueiros. E deu origem às chamadas initial coin  offerings (conhecidas pela sigla ICO) e a outras operações de financiamento, nas quais startups conseguem fundos de uma forma semelhante à venda de capital, mas praticamente à margem de regulação. Muitas destas operações acabaram por revelar-se projectos mal concebidos ou simples fraudes, deixando os investidores sem o dinheiro e sem um regulador a quem recorrer.

Apesar do entusiasmo recente, e com uma década volvida sobre o artigo original de Nakamoto, a blockchain está longe de se massificar. Muitos dos projectos feitos nas empresas não passaram de experiências com uma tecnologia aparentemente promissora, mas para a qual ainda não surgiu um uso capaz de motivar uma adopção alargada – aquilo a que no meio tecnológico se costuma chamar uma killer app.

A blockchain “tem o potencial de ser revolucionária, mas vai demorar mais tempo do que se pensa”, defende a académica americana Robin Teigland, que estuda a bitcoin e a blockchain praticamente desde que apareceram. Teigland dá aulas na Stockholm School of Economics, e divide-se entre a Suécia, os EUA e Portugal, onde gosta de fazer surf nas ondas de Peniche. Conversou com o PÚBLICO durante a SingularityU Portugal Summit, uma conferência no novo pólo da Universidade Nova, em Carcavelos.

Em que lado está na discussão sobre a blockchain? Vê um entusiasmo exagerado? Acha que é revolucionária? Ou fica algures no meio?
Como com todas as tecnologias, há este ciclo de entusiasmo, há dinheiro a ser canalizado para lá, diz-se que vai mudar o mundo. Mas as coisas não mudam da noite para o dia. Temos sistemas, procedimentos e regulações bem estabelecidos que abrandam a revolução. Tem o potencial de ser revolucionária, mas vai demorar mais tempo do que se pensa. Há muita coisa a acontecer cujo impacto ainda não percebemos. Não é apenas a blockchain, vai ser uma combinação com outras tecnologias: a Internet das coisas, a inteligência artificial.

Tem vindo a debruçar-se sobre esta tecnologia há muito tempo...
Sigo isto desde o início. Faz agora dez anos. Estudo as comunidades de software open source desde os anos 90 e isto foi uma evolução. Não sou uma pessoa da área financeira, comecei nisto pelo meu interesse pelo software open source.

A sua opinião sobre a blockchain mudou nestes anos?
Não pensei que o mundo empresarial fosse atrás disto de forma tão rápida como aconteceu. No sector financeiro vêem-se alguns esforços, mas como há tanta regulação e tantas regras a que os bancos têm de prestar atenção não aplicaram os recursos e o tempo necessários.

Muitos dos projectos nas empresas são projectos-piloto, ou projectos internos de blockchains a que só partes autorizadas têm acesso. Não é o contrário do ideal de uma blockchain aberta, em que as partes de facto não se conhecem? Nestes casos, não é só mais uma tecnologia de bases de dados?
Pode dizer-se que sim. Já temos tecnologias de registo distribuído há muito tempo. O que eu gosto no conceito original da blockchain é que é aberta. De certa forma, [as blockchains fechadas] vão contra o que a blockchain era suposto ser. Mas isto é o que acontece, nunca se sabe como a tecnologia vai ser adoptada. Também se pensava que o SMS ia ser usado por empresas e acabou a ser adoptado por adolescentes. Muitas empresas têm medo de ficar de fora, por isso dão o salto. E há consultoras a venderem o conceito.

Houve tecnologias no passado que geraram entusiasmo e depois foram esquecidas. A blockchain corre este risco?
Não sabemos. Mas há muitos ganhos de eficiência que podem ser conseguidos. No transporte de mercadorias, no imobiliário, em tudo o que seja transaccionado. Mesmo no sector financeiro.

As criptomoedas, como a bitcoin, são a killer app da blockchain?
Tenho uma questão: precisamos de moeda? Quem é que diz que precisamos disso num mundo digital? Podemos ter outro sistema. Estamos tão presos ao mundo actual que achamos que precisamos de moeda. Temos de ter cuidado e não levar demasiados conceitos do mundo antigo para o potencial mundo novo.

Está a dizer que as criptomoedas trazem ideias antigas em relação ao conceito dinheiro? É uma opinião que irritaria muitos entusiastas da bitcoin.
Sim, a bitcoin é dinheiro, é algo para investir ou para usar como meio de troca. Pode ser revolucionária no sentido de que não é preciso uma entidade central de confiança, mas continua a ser dinheiro. Infelizmente, houve demasiado entusiasmo e muita gente viu aqui uma forma de tentar enriquecer rapidamente. Não diria que está a fazer algo de novo. Acho que algo diferente vai aparecer, mas não sabemos o quê. Essa é a parte entusiasmante.

E quando é que estima que isso possa aparecer?
É impossível dizer. O Bill Gates diz que sobre-estimamos as mudanças que acontecem em dois anos e subestimamos as que acontecem em dez.

Até certo ponto, parece haver uma ideologia libertária e anti-establishment por trás da blockchain e das criptomoedas. O que está a ter um papel maior na adopção da tecnologia: a própria tecnologia ou questões ideológicas?
Quando ia aos primeiros eventos de bitcoin, olhava-se para as pessoas e não se viam muitas de fato. Havia muitas pessoas interessadas na tecnologia, mas também por razões ideológicas. Viam uma oportunidade para desafiar os grandes bancos, especialmente depois da crise financeira. Muitos dizem que isto é uma resposta à crise financeira, um regresso do poder às mãos das pessoas. Há muitos que têm essa postura libertária. Mas também temos agora as grandes empresas a verem oportunidades. Quando se olha para a comunidade de software open source, há um leque de motivações. É exactamente o que vemos na blockchain e na bitcoin. Há pessoas que querem fazer parte de um movimento, outros que querem mais dinheiro, outros que querem mudar o mundo.

Quem vai liderar este processo? Os libertários entusiastas da tecnologia? Os bancos e as grandes empresas?
Pelo que estamos a ver hoje, ambos. Há muitos empreendedores que estão a lançar-se porque se tornaram milionários com a bitcoin. Estão nisto desde o início, têm muito dinheiro e têm boas ideias. Conheço vários na Suécia, que dizem que conseguem financiar a empresa durante vários anos e que não precisam de capital de risco.

Essa é uma situação muito diferente de fazer uma ICO. Como vê este tipo de operações? Muitas foram classificadas como fraudes.
Infelizmente, sim, muitas delas são. É o lado mau. Mas a ideia é boa. Precisamos de fazer experiências com estas novas formas de financiamento.

É necessária mais regulação?
Tem de ser regulação que não pare, nem abrande, o desenvolvimento, e que tente manter uma abertura para que se experimentem novas formas de organização e de financiamento. O desafio é definir o que isto é. O que é a bitcoin? O que são as ICO? Não se consegue regular sem sabermos o que são. A tecnologia traz mudanças muito rápidas e as políticas vêm atrás. A tendência é para se aplicar as regras antigas, mas não podemos regular assim. Por um lado, há pessoas a dizer que estas redes se podem auto-regular. Por outro, há corrupção, lavagem de dinheiro.

Há quem defenda que o conceito de governança associada a projectos de blockchain é um paradoxo. É um sistema distribuído, mas o facto é que alguém tem de inventar as regras, programá-las no software e tomar decisões.
Concordo. A governança devia ser da comunidade. Mas quem governa a comunidade? Há sempre alguém a tomar decisões, há uma entidade decisora, que geralmente é eleita pela comunidade.

Portanto, há uma autoridade central? Parece quase uma tentativa de reinventar a democracia, mas acaba no mesmo sítio que os sistemas actuais.
Talvez mais para a frente as coisas mudem. Se olharmos para a estrutura moderna de uma empresa, para estes modelos de estrutura hierárquica formal, é algo que só temos há cerca de 150 anos, o que na história da Humanidade é um período de tempo muito curto. Quem nos diz que este tipo de estruturas vai continuar? Este modelo desenvolveu-se por uma questão de controlo e coordenação. Mas, com a Internet, outras formas de organização podem surgir. Estamos nesta fronteira entre organizações hierárquicas tradicionais e este tipo emergente de estruturas auto-organizadas, descentralizadas e distribuídas.

Vê algo de errado em depositar confiança numa instituição central?
Depende da região do mundo. Na Suécia…Não diria em todo o mundo ocidental, mas na Suécia confiamos no Governo, que é bastante aberto e transparente. Há problemas, mas ainda assim confio no banco central e no Governo. Em muitos outros países não há esta confiança. E aí que se vê a blockchain e a bitcoin a crescer. Um desafio é pensarmos nas formas de dinheiro electrónico. Se o dinheiro electrónico for controlado por um Governo, é possível programá-lo e decidir o que as pessoas podem ou não comprar. Um exemplo um pouco disparatado: se o Governo souber que alguém é obeso e essa pessoa for comprar um grande gelado de chocolate, o Governo pode programar o dinheiro e dizer “não está autorizado a gastar dinheiro nisso”.

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