Em Resende há 40 mil livros guardados há dez anos que ainda ninguém pôde ler

António Loureiro doou ao município uma biblioteca pessoal, para que fosse disponibilizada à população da sua terra. Dez anos depois, não sabe o que é feito dela

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António Loureiro guarda, na barbearia, algumas primeiras edições André Rodrigues

Esta não é a história de um cemitério dos livros esquecidos, como o criado pelo escritor catalão Carlos Ruiz Zafón. Esse ainda podia ser acedido secretamente, o que não é o caso dos cerca de 40 mil livros que um cidadão natural de Resende doou a este município, há uma década, com a perspectiva de que fossem disponibilizados à população local. Há anos que António José Loureiro tenta que a sua vontade seja cumprida, mas a autarquia não esclarece, sequer, em que situação se encontra o acervo.

António Loureiro é barbeiro, mas na sua barbearia não “se entra do modo do costume”, para glosar um excerto do texto de Bernardo Soares que ele imprimiu numa parede, invertido, de modo a ser lido correctamente no espelho diante da cadeira. A porta do seu pequeno estabelecimento, em Leça da Palmeira, Matosinhos, está fechada ao público em geral, e só se abre aos clientes de muitos anos. Fiéis, e em número suficiente para garantir o sustento deste homem que pega em pentes e tesouras desde que, em 1972, aos 13 anos, deixou para trás a vila de Resende, para tentar a sorte no Porto.

Por ali, assinala, entra gente que ele acompanha desde o primeiro corte de cabelo, e entrou gente que, até morrer, não quis outras mãos que não as dele. Foi isso que lhe aconteceu com um homem de Famalicão – que ele não identifica, a seu pedido – e de quem, há mais de uma década, herdou uma enorme biblioteca. O gesto só surpreenderá quem não o conhece nem tenha entrado na sua barbearia, onde à prosa do heterónimo de Pessoa se acrescentam, por algumas estantes, muitos livros: Banda Desenhada, sobretudo, mas muita outra literatura, incluindo algumas primeiras edições de Camilo ou de Teixeira de Pascoaes. Livros que são, muitas vezes, o tema de conversa com os seus clientes, como acontecia com aquele que o surpreendeu com a inesperada dádiva.

Nascido em 1959, António Loureiro tem sido, desde que se lembra, um leitor insaciável. Explica que começou pela biblioteca de Resende, no jardim principal da vila, e que  já no Porto, conseguido um emprego, começou a poder comprar os livros que queria. São tantos que, explica, já doou cinco mil à biblioteca da Maia, e com mais uns quantos, que nem sabe precisar, ajudou a montar, na cooperativa de habitação onde vive, em Leça, um espaço de leitura. Também por isso, por este despreendimento, achou que seria útil, para os 11 mil habitantes “de um dos concelhos mais pobres do país”, como Resende, poder contar com a enorme colecção que lhe caiu no colo, e que conta com três mil primeiras edições de literatura vária, do século XIX e XX, mas não se fica pela ficção (poesia e teatro incluídos), abrangendo também milhares de obras sobre várias áreas do conhecimento.

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André Rodrigues

Protocolo nunca foi assinado

Foi assim que, em Julho de 2009, um camião TIR, com caixotes e caixotes de livros, chegou a Resende, enviado, e pago, por um filho de uma família humilde da vila que, com o gesto, pretendia partilhar com os seus conterrâneos o mesmo alargar de horizontes que a literatura lhe vinha permitindo, nos quase 50 anos que levava de vida. No ano anterior, e depois de uma reunião em que expusera a sua intenção de viva voz, António Loureiro escrevera ao então presidente da Câmara, António Borges, confirmando a sua vontade, e viu a doação ser aceite, por unanimidade, pelo executivo municipal de então, a 17 de Fevereiro de 2009.

Confiando nos seus interlocutores e concidadãos, Loureiro entregou a colecção ainda antes de assinar o protocolo que estabelecia os termos desta doação. Mas quase dez anos passados, o protocolo continua por assinar, queixa-se, e não há informação actualizada sobre o estado dos livros - que chegou a ver, pouco tempo depois, nas mesmas caixas, ao ar livre, no pátio de uma escola – ou um prazo para a sua disponibilização. Questionada na semana passada pelo público, a autarquia de Resende limitou-se a copiar, em Outubro de 2018, a resposta dada pela vereadora da Cultura, no mandato passado, em 2013, à Provedoria de Justiça, entidade a que António Loureiro tinha recorrido.

Nessa resposta, Sandra Pinto explicava que a colecção é muito grande, contendo, eventualmente, até, mais do que os 40 mil livros da listagem entregue, o que exigia um moroso trabalho de organização, catalogação e indexação por parte da pequena equipa da biblioteca local, que já teria, na altura, inventariado cinco mil livros. Argumentava que esses nem tinham sido ainda disponibilizados porque o doador impusera que tal só deveria acontecer quando fosse possível consultar a totalidade do espólio, do qual deveriam ser excluídos 2500 livros, a pedido de António Loureiro, que pretendia vê-los num espaço reservado, a que só ele, em vida, teria acesso, passando, depois, a ser integrados no restante acervo.

O local de instalação desta biblioteca parece ser, também, um problema. Na carta enviada em 2008 ao anterior presidente da Câmara, Loureiro descreve “três condições essenciais” para a doação, “acordadas”, escrevia então, numa reunião com o autarca e com a respectiva vereadora da cultura. Essas condições eram a garantia da “indivisibilidade” da colecção, a manutenção e preservação da mesma por parte do município e a sua acomodação num “espaço digno no tribunal do local”. Mas na resposta ao Provedor de Justiça no final de 2013, a actual vereadora do pelouro nunca refere este edifício, explicando que ainda corria um prazo de seis meses, concedido pelo doador após nova reunião, para encontrar uma outra localização adequada.

Estado dos livros é desconhecido

Tendo em conta que passaram entretanto cinco anos, o PÚBLICO questionou de novo o gabinete de imprensa do Município, para perceber, se, neste período, mais nada tinha sido feito com esta doação, mas essa nova pergunta já não teve resposta. Quer do depoimento de António loureiro, quer dessa carta da autarquia à Provedoria de Justiça, percebe-se que a relação dos executivos camarários anterior e actual, com o doador, nunca foi fácil. António Loureiro expôs, logo numa carta de 2008, o desejo de que lhe fosse concedido, após a reforma, o acesso livre à biblioteca municipal, onde pretenderia fazer trabalho voluntário, uma pretensão que diz ter-lhe sido negada. O PÚBLICO não conseguiu saber, também, se os livros continuam encaixotados, já não no pátio de uma escola, mas numa sala num centro escolar, onde o doador os filmou, em 2013.

Certo é que, até hoje, nenhum habitante de Resende pode usufruir daquela imensa biblioteca, o que há muito exaspera o barbeiro de Leça, que, antecipando os dias da reforma, se via já na casa da família, na vila onde nasceu, perto de todos aqueles livros. António Loureiro, que se recusou a ser fotografado por não querer, diz, retirar o protagonismo ao seu gesto, e aos livros que doou, ainda se fez acompanhar, numa das últimas reuniões com a autarquia, por um amigo advogado, Cândido Aguiar.

Ao PÚBLICO este considerou que o doador está a pagar pela ingenuidade, pela “boa fé”, com que abordou o assunto, ao entregar a biblioteca sem um protocolo assinado. E acrescenta que, se assim o desejasse, este poderia, em devido tempo, ter interposto uma acção judicial, para que lhe fossem restituídos os livros. Loureiro explica que nunca foi por esse caminho, porque o que pretendia mesmo era que a sua vontade fosse cumprida, e que aquele acervo passasse a estar disponível para os seus conterrâneos. Algo que não sabe se, ou quando, acontecerá, e que o município acabou por não esclarecer, apesar dos vários contactos do PÚBLICO.

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