Outono: “Allegro ma non troppo"?

O “Portugal não é a Itália” de Mário Centeno pode interessar pouco se a Itália for ao fundo.

O Outono anunciou-se quente. A caixa de Pandora foi aberta com as mensagens do BCE a partir de Bali e a resposta da Comissão Europeia à proposta de Orçamento do Estado de Itália.

Com efeito, no caso do défice italiano, os decisores europeus parece que gostam não só de mostrar o seu poder como da própria adrenalina de um jogo de poker negocial com a Itália. Nada como conduzir uma negociação política em que o pior cenário seria a desintegração do euro! Mas tal não vai acontecer porque esses decisores têm (quase) tudo sob controlo para ser dado o passo atrás necessário, mas só no momento certo.

As autoridades europeias parece que pretendiam que os mercados dessem um sinal ao Governo italiano precipitando uma fuga de capitais e de depósitos, como aconteceu na Grécia. A posição do antigo presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, é sintomática. Dijsselbloem argumenta que a Comissão Europeia não tem opção senão entrar em confronto com o Governo italiano, mas que as autoridades bancárias europeias terão de ajudar a Comissão Europeia pressionando os bancos italianos e, claro, os “mercados” também irão dar uma ajuda desempenhando o seu “papel”. A pressão tem de ser suficientemente grande para “convencer” o Governo italiano a mudar de curso. Dijsselbloem sugere que há risco de implosão da economia italiana, mas que não há risco de contágio como no caso grego.

A intervenção de Dijsselbloem lembrou-me a de Ben Bernanke, Presidente da Reserva Federal, em Março de 2007, quando disse que "o impacto dos problemas no mercado hipotecário de risco na economia e nos mercados financeiros provavelmente será contido”!

A Moody’s fez o que as autoridades europeias queriam ...

Na sexta feira à noite, após o encerramento dos mercados em Nova Yorque, a Moody’s baixou o rating da dívida de Itália para um único nível acima da classificação “lixo”. Claro que durante todo o dia de sexta feira, o “insider trading” - de gente que já sabia que o rating ia baixar - foi animado, com as taxas de juro de Itália, Espanha e Portugal a disparar e a taxa de juro a 10 anos de Itália a aproximar-se dos 3,8%, para depois recuar para 3,56%. Há um ano atrás, a taxa de juro da dívida italiana a 10 anos estava a 2,05%.

Mas esse contágio a Espanha e a Portugal, mostra que o “Portugal não é a Itália” de Mário Centeno pode interessar pouco se a Itália for ao fundo.

Crise é séria, mas pânico nos mercados favorece, para já, a Itália

Dados do Banco de Itália revelam que investidores estrangeiros, que detinham cerca de 28% da dívida pública italiana (i.e., 650 mil milhões de euros desta dívida) no final de Agosto, desfizeram-se de 75 mil milhões de euros de dívida pública italiana em Maio, Junho e Agosto. Em Abril, os investidores estrangeiros detinham 722 mil milhões de euros de dívida pública italiana (31% do total). Ou seja, os dados sugerem uma importante fuga de capitais por parte de não residentes que terá continuado em Setembro e Outubro. Essa dívida foi adquirida por residentes italianos, seguradoras e bancos.

Os investidores estrangeiros sofreram perdas significativas com a venda dessa dívida. Por exemplo, não contabilizando o efeito dos juros entretanto auferidos, o valor de mercado da dívida italiana com maturidade de nove anos em Outubro caiu quase 13% no último ano, com o grosso da queda a ocorrer desde o início de Maio. São variações de preço muito abruptas para os investidores institucionais em dívida pública. Os bancos e seguradoras da Itália que adquiriram esta dívida pública agradecem o desconto no preço dessa dívida, que lhes confere juros relativamente elevados.

É provável que próximas descidas de rating forcem investidores institucionais a vender mais dívida pública italiana, independentemente do seu preço, ou seja, resultem numa maior fuga de capitais estrangeiros e numa subida adicional da taxa de juro da dívida italiana.

A Itália registou em 2017 um excedente de balança corrente de 2,8% do PIB (48 mil milhões de euros nos 12 meses até Junho). Por conseguinte, tem capacidade para suportar fugas de capitais de 75 mil milhões de euros num quadrimestre, sobretudo porque o seu sistema bancário pode recorrer ao sistema de pagamentos Target 2 via empréstimos do Eurosistema.

Claro que a dívida Target 2 do Banco de Itália ao BCE aumenta. Mas essa dívida, no presente, não é remunerada. Quase o que se designa por “win-win” para Itália.

É certo que as novas emissões de dívida pública italiana serão realizadas a taxas de juro mais elevadas. Mas, no curto prazo, o impacto é diminuto: a despesa pública com juros aumentará menos de cinco mil milhões de euros por ano, em comparação com um cenário de taxas de juro inalteradas ao nível de 2017. E, entretanto, o Estado italiano irá cobrar mais impostos sobre os lucros à banca e às seguradoras italianas.

Perdido por cem perdido por mil?

O principal risco é que se continuarem as vendas de dívida pública italiana por não residentes, a exposição do sector bancário italiano à dívida pública italiana teria de aumentar significativamente. Se essa dívida for detida apenas temporariamente para ser revendida mais tarde, as variações do preço da dívida teriam de ser reflectidas no balanço afectando os rácios de capital da banca italiana.

Mas, em resultado da sua elevada exposição à dívida pública italiana, a banca italiana provavelmente não terá alternativa senão continuar compradora. E é provável que, em consequência dessa exposição, a banca italiana reduza o crédito ao sector privado, para procurar reduzir o risco.

A Itália não é, de facto, a Grécia

O elevado excedente da balança corrente italiana significa que todos os anos entram no sistema financeiro italiano cerca de 48 mil milhões de poupança externa. A Itália tem uma posição de investimento internacional equilibrada e um saldo orçamental primário excedentário. O contraste com a Grécia de 2015 não poderia ser maior. Por conseguinte, a fuga de capital e de depósitos teria de ser muito grande para precipitar uma crise similar à grega.

Acresce que o sistema bancário italiano é menos vulnerável que o grego (ou que o português) a fugas de capitais, desde logo porque a dimensão de Itália e dos bancos italianos lhes confere alguma segurança.

Mas a questão fundamental é que o capital exigido aos bancos para deterem dívida pública até à maturidade (i.é. não detida apenas temporariamente) é de 0%, como definido nos acordos de Basileia. E, por isso, as variações no preço de mercado dessa dívida não têm de ser reflectidas no balanço dos bancos. É como se a dívida pública não tivesse qualquer risco. Ou seja, os bancos italianos podem em teoria adquirir volumes ilimitados de dívida pública italiana, para posteriormente utilizarem essa dívida como colateral em operações de refinanciamento junto do Eurosistema.

Os testes de stress da Autoridade Bancária Europeia (EBA) e do Mecanismo Único de Supervisão (SSM) do BCE introduzem, porém, por vias travessas, rácios de capitais mínimos na dívida soberana. Para Portugal, por exemplo, em 2015, eram equivalentes à exigência, no cenário adverso, de rácios de capital bancário de 11% para dívida pública a 10 anos. Em Itália, o efeito é muito menor, porque nos testes de stress é exigido muito menos capital para a dívida pública italiana.

O principal efeito da crise será nas expectativas e no crédito às empresas italianas.

Especuladores interessados em mini-crise italiana?

A actual telenovela com a Itália será provavelmente encorajada por alguns investidores interessados em realizar, no curto prazo, elevadas mais valias com a dívida pública italiana, à custa de investidores que serão obrigados a vender a dívida italiana se as principais agências de rating baixarem o rating da dívida de Itália da classe “investimento” para “lixo”.

Entretanto, a pressão dos mercados será utilizada para chegar a um compromisso que salvaguarde a face tanto das autoridades europeias como do Governo italiano. Moscovici teria definido um limite para o défice de 2% do PIB. Itália quer 2,4% do PIB. Chega-se a acordo nos 2,2% do PIB?

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