António Ramos Rosa: O rigor da palavra nua

Importante reunião da poesia publicada por António Ramos Rosa ao longo de cerca de trinta anos, este primeiro volume da Obra Poética congrega cerca de três dezenas de títulos autónomos numa determinante revisão e estabelecimento do cânone de um dos nomes fundamentais da poesia do século XX.

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Nuno Ferreira Santos

Este volume inaugural da Obra Poética de António Ramos Rosa reúne, conforme nota da edição, "os poemas publicados em livro ou folheto entre 1958 e 1987". Neste trabalho de reunião da poesia de Ramos Rosa, não só se confrontaram as edições originais com as emendas do poeta, como se suprimiram determinadas composições, mediante vontade expressa do autor. O arranjo final dos poemas tendeu a evitar sobreposições, pelo que livros que passaram a constituir segmentos de títulos posteriores não se repetem nesta edição. Trata-se de um critério que concorre para a definição de um cânone que se revela especialmente pertinente no caso de um poeta como António Ramos Rosa, autor de uma produção escrita e editada marcadamente caudalosa. A uniformização e agrupamento deste vasto corpus poético era, desde há muito, uma necessidade sentida e um imperativo para o conhecimento da poesia portuguesa. Um segundo volume incluirá toda a restante poesia que o autor publicou em vida, ficando reservado para o terceiro: dispersos, inéditos, os poemas publicados nos livros em colaboração as traduções de poesia de António Ramos Rosa.

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Vergílio Ferreira chamou a António Ramos Rosa “poeta pobre”. Um poeta pobre “investido da riqueza de sermos homens. De sermos simplesmente humanos” Nuno Ferreira Santos

Perante o amplo panorama de uma edição integral como esta, de António Ramos Rosa, diz-nos Maria Filipe Ramos Rosa, que colaborou na edição que foi organizada por Luis Manuel Gaspar: “Não consigo fazer uma leitura da ‘série ordenada duma ponta à outra’. Encaro a Obra Completa como um trabalho necessário, porque os livros estão esgotados e para estudar um autor há obviamente que ter acesso ao que escreveu.” Pensar uma obra com a amplitude e as decorrências desta, suscita, necessariamente, interrogações acerca do homem que as produziu. Sobretudo se estamos perante um poeta a propósito do qual dois ensaístas, como Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço, falaram de pudor — Vergílio falou mesmo de uma “ética do pudor” (Espaço do Invisível — I, Arcádia, 1978). “Não sei se”, diz-nos Maria Filipe Ramos Rosa, “se lê de modo diferente quando se conhece a pessoa. Aquilo que o poema diz está muito próximo do que a pessoa do poeta procurava na vida: uma ligação mais próxima e harmoniosa com o outro e com a natureza, uma comunhão ou mesmo fusão com o universo.” Acrescenta mesmo: “Não me parece que seja preciso conhecer a pessoa para se chegar a esta conclusão. Acho que os poemas dizem tudo, duma forma quase imediata, ao passo que conhecer uma pessoa demora anos, mesmo convivendo com ela diariamente. Sobretudo quando se é uma criança: a imagem do outro é alterada à medida que se altera a nossa própria imagem.”

Conforme esclarece Luis Manuel Gaspar, que trabalhou sobre originais com emendas do próprio Ramos Rosa, “uma das questões que mereceram especial cuidado na fixação do texto deste primeiro volume da Obra Poética de António Ramos Rosa diz respeito a um número apreciável de poemas formados por várias partes que têm um certo grau de independência.” A título de exemplo, clarifica: “O título Seis Poemas da Terra, dado a uma composição de Voz Inicial (pp. 80-81), enfatiza a autonomia das suas seis partes.” Informa-nos, ainda, o organizador deste primeiro volume que “consoante os critérios gráficos das muitas editoras responsáveis pelas edições originais dos livros, e das que mais tarde reeditaram alguns deles em volumes antológicos, as diversas partes destes poemas vinham separadas por sinais gráficos (asteriscos, pequenos círculos pretos, quatro pontos formando um quadrado) ou espaços maiores que os usados para dividir estrofes. Nalguns casos, cada parte do poema surge em página nova, apenas se distinguindo de poemas autónomos pelo título comum a iniciar a sequência. A partir do fim dos anos 70, deixam de ser usados sinais gráficos como separadores e torna-se menos nítida a distinção entre estrofes e partes de poemas.” Enquanto que “na reedição de 1989, por exemplo, já não é possível perceber ao certo onde estão os Seis Poemas da Terra, na Obra Poética retoma-se, de modo uniforme, o critério do sinal gráfico (asterisco) para indicar a separação das partes de poemas, passando os respectivos primeiros versos a constar no índice.”

Referindo-se ao conjunto de Obra Poética, diz-nos Maria Filipe Ramos Rosa: “O meu Ramos Rosa preferido são alguns poemas; neste momento são precisamente aqueles que mais perto chegaram do absoluto dessa comunhão de que falei. Aqueles em que o sujeito acaba por ser a própria pedra, a árvore, a estrela.” Destaca o poema Até onde Vós Estais — “Ó presenças amigas, ó momento/em que alongo o braço e toco em cheio os rostos./A minha língua abriu-se para dizer a face/ do vento que percorre as vossas vidas.// Estou perante a noite mais profunda,/ a delicada noite das raízes: vejo rostos/ vejo os sinais e os suores das vossas vidas.” (p.850) —, mas também uma composição que há-de figurar em Obra Poética II: “Partir dos minerais dos abruptos flancos/ ou da lisura dos planos das arestas afiadas/ reencontrar a violência da expansão da lava/ deixar de ser um ponto de coordenadas/ romper os contornos do lugar/ quebrar os laços entre o corpo e os seus abrigos/ procurar os caminhos sem caminho/ onde a sombra se abre como um futuro antigo” (O Livro da Ignorância, Signo, 1988)

Numa inteligente aproximação entre Vergílio Ferreira e António Ramos Rosa, Ana Paula Coutinho Mendes salienta que ambos os autores viriam a “afastar-se claramente de uma estética pró-neo-realista, pelo menos na vertente mais ortodoxa do seu ideário estético e político, por recusa da instrumentalização do discurso literário” (Vergílio Ferreira e António Ramos Rosa: o Encontro entre o romancista e o poeta, Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXII, 2005). Atentando ao importante simbolismo dos títulos de ambos os autores, a ensaísta destaca Voz Inicial, livro a partir do qual, defende, Ramos Rosa “envereda, definitivamente e de forma inequívoca, pelo mundo originário das evidências fenomenológicas”. Realmente, em livros iniciais, como O Grito Claro (1958) e Viagem através duma Nebulosa (1960), ainda é perceptível um certo apego ao que Eduardo Lourenço chamou “lirismo ideológico” (Tempo e Poesia, Relógio D’Água, 1987) — “Há uma casa que me espera/para uma festa de irmãos” (p.23); “Que cor ó telhados de miséria/onde nasci” (p.44). Gradualmente, porém, a poesia de Ramos Rosa, como disse Eduardo Lourenço, vai “despir[-se] de toda a anedota” (Tempo e Poesia), no sentido em que, cada vez mais, abdica do que é acidental, ou transitório, para se fixar, ou tender a fixar-se, em algo de imutável. Eis aí, precisamente, um dos paradoxos fundamentais desta poética: a pulsão unificadora e totalizante que esbarra contra a finitude e a descontinuidade. Conforme defende Silvina Rodrigues Lopes, no seu posfácio, “O centro do poema tece-se como imagem do ‘centro imóvel’”, idêntico ao centro do universo.” (p.1216) Trata-se, para recuperar um título do próprio Ramos Rosa, de uma “dinâmica subtil”, assente em bases delicadas, fundações friáveis, um “insituável lugar”, título de um poema daquela colectânea — “Desenrola-se sobre os resíduos sob o vento/ uma espécie de/ animal ou fábula ou deus pequeno/ Sombras resvalam” (p.960).

Vergílio Ferreira chamou-lhe “poeta pobre”. Um poeta pobre “investido da riqueza de sermos homens. De sermos simplesmente humanos.” (Espaço do Invisível IV, INCM, 1987). Desde os primeiros livros que Ramos Rosa afirmou na sua poesia o valor e a centralidade dessa pobreza que era uma nudez, esse despojamento que era uma essencialidade, ou o caminho mais recto para ela — “As palavras mais nuas/as mais tristes./As palavras mais pobres/ as que dormem/ na sombra dos meus olhos.” (p.53) Num livro posterior, e justamente uma das suas mais poderosas realizações, Ciclo do Cavalo (Limiar, 1975), Ramos Rosa escreve do “rigor da palavra/nua. Pátria do meu corpo” (p.467). Foi sempre para essa nudeza, para essa abdicação do acessório, que a poesia de António Ramos Rosa caminhou. Foi despir-se que conseguiu.

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