A Regulação de Novas Tecnologias: Um cinismo equilibrado

Matérias como a certificação de determinado conhecimento, o dever de cuidado de um médico ou as associadas à mera compra de um produto numa loja através de realidade virtual ou aumentada, configuram questões que devem ser respondidas agora.

Numa altura em que existe uma elevada expectativa em relação a novas tecnologias como a inteligência artificial (AI), blockchain ou criptocurrencies, a atenção acaba por recair nas tecnologias da realidade aumentada e virtual (AR e VR) e nas suas inúmeras aplicações, uma vez que a sua entrada no mercado está prevista para o início de 2019. Desde a indústria automóvel, militar, aos videojogos e ao marketing e publicidade, as aplicações destas novas tecnologias são quase infindáveis, independentemente do potencial abuso ou do mau uso que estas possam proporcionar.

É neste panorama que o Direito e a Lei têm um papel fundamental. As questões éticas e sociais que têm sido abordadas sobretudo no que diz respeito à inteligência artificial, não são, nem podem ser, exclusivas desta tecnologia.

Ora, a falta de preparação do Direito ou da própria sociedade para lidar com tecnologias disruptivas não é novidade, verificando-se que, normalmente, a atenção a estes fenómenos costuma surgir por necessidade reativa e não tanto a título de prevenção de eventuais efeitos nocivos. Exemplo disso mesmo é o fenómeno das redes sociais, o qual, apesar da inequívoca progressão socioeconómica a que temos assistido nos últimos dez anos, apresenta desafios sociais e legais que todos os dias lançam reptos de desconfiança e de incerteza quanto ao seu verdadeiro potencial. A este propósito não creio ser relevante discutir se a tecnologia tem um potencial maligno ou se é o homem o responsável por essa hipotética malicia.

Se de um ponto de vista subjetivo parece inegável que as tecnologias são propensas a qualquer tipo de resultado, seja ele positivo ou negativo, parece-me que as questões relevantes quanto à sua regulação se devem focar nas qualidades objetivas, positivas e negativas, dessas tecnologias. Esta análise objetiva é necessária, a fim de permitir aos reguladores uma compreensão mais detalhada do espectro de uso de uma determinada tecnologia, e definir, preventivamente, aquilo que deve ser regulado sem cair na armadilha do excesso de regulação.

O perigo de over regulation é igualmente sério e implica um esforço de moderação e de compreensão até ao mais ínfimo detalhe, sob pena de colocar entraves à iniciativa da indústria e de obstruir o período de adaptação e progressão das tecnologias e da sua relação com a sociedade. Para tal, é necessário que haja um acompanhamento do processo de regulação por parte de todos os intervenientes no ciclo da vida da tecnologia, desde o seu desenvolvimento até à entrada no mercado, de forma a colmatar as potenciais lacunas de informação sobre a tecnologia e o seu potencial carácter transformador na sociedade.

Só lidando com este dilema da informação e do poder transformador de uma tecnologia emergente é que se torna possível regular de forma equilibrada a indústria da inovação. Dessa forma, caberá aos intervenientes neste processo de acompanhamento determinar quais os efeitos éticos, sociais e políticos que se possam considerar (in)desejáveis. A decisão daquilo que é desejável ou não, permite a integração de uma tecnologia na sociedade de forma mais legítima e democrática e uma maior margem de adaptação da própria indústria tecnológica, sem que seja constantemente surpreendida com novas decisões políticas e legislativas.  

A atribuição de diferentes papéis na definição das políticas a seguir numa determinada indústria é algo que muitas vezes é facilmente manipulável, o que, por si só, principalmente quanto à definição desses efeitos desejáveis, requer o estabelecimento de prioridades.

A determinação daquilo que é desejável para a nossa sociedade de um ponto de vista ético e social deve estar, idealmente, no topo das prioridades. A definição política e económica, muitas vezes dependentes uma da outra, deve por isso passar para segundo plano, o que não significa uma desvalorização do papel daqueles fatores enquanto condicionadores ativos do mercado e da sociedade, mas sim o retrato daquilo que deve ser tido como prioritário no momento da regulação de uma determinada tecnologia, seja ela a inteligência artificial, a realidade virtual ou mesmo a robótica.

Quanto aos resultados financeiros e económicos, não me parece razoável esperar ou exigir mais do que aquilo que for definido por aqueles que assumem o papel de investidores da própria indústria. Qualquer outra hipótese seria no mínimo um ato de hipocrisia política e social, uma vez que quem detém o poder e a vontade de investimento é quem, de preferência com consciência, deve estar ao volante da indústria.

Este paradigma aparentemente óbvio é na verdade uma novidade, principalmente no contexto da inovação tecnológica. Acredite-se ou não, estas novas tecnologias vão trazer mudanças radicais em vários sectores da sociedade, desde a forma como as empresas se organizam e tomam decisões, e como nós, indivíduos, nos relacionamos uns com uns outros, até ao entendimento daquilo que até há uns anos era garantido como realidade.

A utilização de inteligência artificial nas mesas de administração de grandes empresas e de hospitais, o uso de AR e VR como meios de publicidade e veículos de conhecimento, e o próprio processamento de dados em larga escala colocam questões jurídicas e socialmente relevantes. Matérias como a certificação de determinado conhecimento, o dever de cuidado de um médico ou as associadas à mera compra de um produto numa loja através de realidade virtual ou aumentada, configuram questões que devem ser colocadas e preferencialmente respondidas agora.

Não responder a estas questões de forma preventiva é correr o risco de sucumbir ao determinismo tecnológico, onde a tecnologia passa a condicionar os efeitos éticos, políticos e económicos da nossa sociedade sem nos dar a hipótese de ser cínicos como Diógenes e dizer que, podendo ser quem nós quisermos, continuaremos a ser Diógenes.

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