Manuela, uma auto-estrada e vinhas onde não havia nada

Uma oftalmologista sem experiência como produtora de vinho lançou-se numa aventura na Beira Interior, zona de poucas vinhas. Com o enólogo Rui Reguinga, a Adega 23 lançou já um branco e um rosé. O tinto acaba de chegar ao mercado.

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Andreia Patriarca
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Quando estacionamos junto à Adega 23, em Sarnadas de Ródão, próximo de Vila Velha de Ródão, são 9h30 e Manuela Carmona está a acabar de chegar da vinha da casta Rufete, onde a vindima já terminou. Começou cedo, correu bem, era uma vinha pequena e os voluntários estão todos animados.

É assim que Manuela faz toda a sua vindima (a reportagem aconteceu em Setembro), com a ajuda de voluntários que chegam cedo, muitos deles antes de irem para os respectivos trabalhos, e que gostam do convívio. “Eu sou a primeira a chegar à vindima”, garante esta médica oftalmologista, e antiga presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, que agora se dedica (também) ao vinho. “Aqui só vindimamos com voluntários, vêm pessoas de Coimbra e até muita gente de Lisboa, sobretudo aos fins-de-semana.”

Ela própria tira férias para poder acompanhar a vindima, mas, como quem manda nisto é a natureza, quando a maturação das uvas acontece mais tarde do que o previsto, é preciso conciliar essa tarefa com as consultas de oftalmologia que continua a dar em Castelo Branco, onde nasceu, e em Lisboa.

Este é apenas o segundo ano em que há vindima na Adega 23. A vinha — 12 hectares, em regime de produção integrada — só foi plantada em 2015 e tudo é ainda bastante novo para Manuela e para os amigos que se oferecem como voluntários. Vários deles estão agora no tapete de escolha, a seleccionar as uvas que acabaram de colher. “Estas podem ir fora”, diz Manuela, retirando um cacho queimado pelo sol. “É melhor ter menos vinho e melhor vinho.”

Leva-nos depois até à adega para uma das coisas de que mais gosta: provar o vinho que está nas cubas de inox, em diferentes fases. Passa pelas cubas, tira um pouco para um copo, dá-nos a provar, comenta, faz perguntas. “Quando comecei a provar vinho achava um disparate dizer que cheirava a isto ou àquilo, foi como quando comecei a fazer operações às cataratas e pensava ‘nunca vou conseguir fazer isto bem’.” Depois, “às tantas, começa-se a fazer as coisas com uma naturalidade muito maior”.

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Parece uma história improvável, esta de uma oftalmologista que resolve fazer vinho e que constrói uma adega na Beira Interior. Mas Manuela é alguém a quem as improbabilidades não metem medo. Recorda, com uma gargalhada, o “stress imenso” do ano passado, primeira vindima, “equipamentos todos novos”, trabalho feito com voluntários, “as uvas a ficarem maduras de repente”, a apanha a começar no dia 17 de Agosto. “Há uma dose de inconsciência muito grande”, confessa. Para uma estreante, foi, no mínimo, um ano interessante.

Mas claro que Manuela não se lançou nesta aventura sozinha. A trabalhar com ela está o enólogo Rui Reguinga e, juntos, já colocaram no mercado dois vinhos Adega 23, um branco (Verdelho, Arinto, Viognier e Síria) e um rosé muito gastronómico (de Aragonês e Rufete). “O Rui acompanhou o projecto desde o início”, conta a produtora. “A escolha das castas que plantámos foi dele” — nos tintos, Touriga Nacional, Rufete, Alicante Bouschet, Aragonês e Syrah; nos brancos, Síria, Arinto, Verdelho e Viognier.

Manuela foi fazendo sugestões, muito em função dos vinhos que gosta de beber — mas houve casos em que teve que se render às evidências: algumas castas que aprecia não se dariam bem nesta região. “Se perguntar ao Rui, ele sabe melhor o tipo de vinhos de que eu gosto do que eu própria. Deu-me a provar vários e pedia para eu escolher aquele que preferia.”

Sonho e pragmatismo

No final, o que Manuela pediu ao enólogo foi isto: “Quero fazer o melhor vinho que conseguir fazer aqui.” O problema é o “aqui”. Não estamos num terreno fácil. Saímos da confortável sala de provas — com lareira, “porque no Inverno é terrivelmente frio”, madeira empilhada à volta, sofá em frente, livros sobre vinho espalhados em pequenas mesas — onde almoçámos, provando os dois vinhos, e vamos até à varanda.

Manuela olha para a vinha que rodeia o edifício da adega — e que se estende de ambos os lados da A23 (daí o nome) — e explica por que é que tudo é mais difícil aqui. “Lembro-me de quando era miúda haver trigo nesta zona”, diz. “Nunca houve aqui o culto do vinho. O olival foi sempre a cultura por excelência e as pessoas usavam a vinha para delimitar propriedades.”

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Manuela Carmona, a proprietária da Adega 23 Andreia Patriarca

Depois, gradualmente, a agricultura foi desaparecendo. “Hoje, as áreas que não arderam estão infestadas de javalis e veados. Quando tentei recuperar a vinha, ela estava num estado péssimo. Aqui, a zona que estamos a ver era mato selvagem, silvas, giestas.” Resistiram os muros de xisto que antigamente delimitavam as pequenas propriedades. “Na Beira é raro haver propriedades com alguma dimensão, são sempre muito fragmentadas por causa das heranças.”

O que é curioso na zona onde nos encontramos, explica, é que estamos a sul da serra da Gardunha e há muitas diferenças relativamente à parte a norte da mesma serra. “Aqui estamos mais próximos do Alentejo, há uma pronúncia diferente, usamos mais o poejo e a hortelã.”

O terreno é árido, há problemas de água, e há grandes amplitudes térmicas, com Verões muito quentes e Invernos muito frios. “Chegamos a ter 20º de diferença entre a máxima e a mínima. Mas isso é bom para a vinha.” O que já não é tão bom é o facto de não haver vizinhos com vinhas, com os quais se possa trocar impressões ou até pedir material emprestado quando alguma coisa se avaria.

Mas, dificuldades à parte, o vinho está aí (o branco e o rosé desde há quatro meses, o tinto acabadinho de sair, e mais para a frente haverá também espumante) e é tempo de o colocar no mercado. Quem o faz? Manuela, claro. Enche o carro com caixas do Adega 23 e faz-se à estrada para fazer entregas em garrafeiras e restaurantes, onde vai explicando o projecto. Porquê? Porque lhe dá gozo, apesar do trabalho. E, para esta mulher que também pinta aguarelas (ou pintava, quando tinha tempo), isso é o mais importante.

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Na parede da sala de provas, tem um trabalho do artista plástico João Louro, uma ampliação da capa de uma edição do D. Quixote de La Mancha. É uma escolha com algum significado especial?, perguntamos. Manuela pára um instante a pensar. Talvez. “É o equilíbrio entre o sonho e o pragmatismo.” 

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