Em Berlim, a comida (vegan) é a nova festa

A cidade da música electrónica, dos clubes e da noite apresenta-se agora como a capital vegan da Europa. Berlim não deixou de fazer a festa, mas fá-lo também através da comida – e cada vez mais sem proteína animal.

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Sophia Hoffmann é elegante e risonha, cabelos loiros, olhos claros e os braços cobertos de tatuagens – um tigre, uma sereia, um flamingo, uns tomates, uma cebola. “Trabalhei na noite durante dez anos, como DJ e promotora de festas”, conta. Mas, a certa altura, começou a sentir-se cansada do que andava a fazer e decidiu dedicar-se à comida.

“Trabalhava com outra amiga DJ, a Nina [Kransel, do restaurante Let It Be], temos até a mesma tatuagem de um tigre nos braços, mas também ela está hoje no negócio dos restaurantes”, continua. “É engraçado como as coisas evoluem. Hoje estamos ambas a cozinhar e somos ambas vegan. A ideia de que em Berlim a comida se tornou a nova festa encaixa muito bem na minha história.”

Estamos sentados no Cookies Cream, o restaurante vegetariano de Berlim, no bairro de Mitte, que em 2017 conquistou uma estrela Michelin. A sala está cheia e animada, este é um ambiente Michelin diferente, e nem poderia ser de outra maneira num espaço meio escondido por trás do hotel Westin Grand, ao qual se acede por umas traseiras de ar industrial, como quem está a chegar a uma festa clandestina. Pintada na parede da sala, uma palavra: “Ficken” (“Fuck”).

How bad do you want it?

I’ll fuck you on your desk and in the toilet of an airplane.

We share a fag together until the smoke alarm goes off.

You talk of love. I talk of freedom. Until… the next one comes around.

Let’s not overthink things!

Hell, yes! Baby, I want to eat you.

O texto, no site do Cookies, mesmo antes de começarmos a ler o menu, não deixa grande margem para dúvidas. Sim, estamos em Berlim e a festa pode ter mudado, mas certamente não acabou.

Aqui funcionou no passado um cinema onde passavam filmes franceses, depois transformou-se num clube nocturno pela mão de Heinz Gindullis, mais conhecido como Cookie, nascido em Londres e que chegou a Berlim com 18 anos, em 1992, três anos depois da queda do Muro e numa altura em que a cidade era muito diferente do que é hoje.

Cookie começou por abrir um bar que ao longo dos anos foi mudando de lugar e crescendo em popularidade, e foi sempre sabendo ler o ar dos tempos. De tal maneira que, quando ainda ninguém falava em comida vegetariana ou vegan, ele, que era vegetariano desde os oito anos, pensou em criar um restaurante onde não se servisse carne ou peixe – foi em 2007 que abriu o Cookies Cream, tendo já como chef Stephan Hentschel, na altura com 25 anos. Stephan fora um cliente do bar de Cookie mas oferecera-se para trabalhar e, apesar de não ser vegetariano, revelou um entusiasmo enorme, criando a cozinha que o guia Michelin veio a reconhecer.

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Sophia Hoffmann durante um dos seus jantares desperdício zero dr

Passou-se mais de uma década e, hoje, Berlim apresenta-se como a “capital vegan da Europa” (embora no site Happy Cow esteja neste momento no segundo lugar, depois de ter sido ultrapassada por Londres) com um número impressionante, e crescente, de espaços onde não entra proteína animal – segundo o Happy Cow, são 65 restaurantes vegan e 320 vegetarianos/ou com opções vegetarianas.

Sophia Hoffman, que lançou o livro Vegan Queens, sobre mulheres que se dedicam à cozinha vegan, só começaria a ligar-se à comida de forma mais profissional a partir de 2011. “Os blogues de comida estavam a começar nessa altura, uma amiga deu-me a ideia de fazer um e isso levou-me a mergulhar mais no tema. As pessoas liam, perguntavam onde podiam comer aquelas coisas e, em 2012, eu comecei a fazer pop-ups. Já era vegetariana, mas tornei-me vegan muito rapidamente a partir daí.”

Christian Tänzler, responsável pela comunicação do Turismo de Berlim, que nos acompanha no jantar do Cookies Cream, diz que só há uns cinco ou seis anos é que as coisas começaram a mudar de forma mais evidente. “Antes disso ninguém dizia que vinha a Berlim para comer”. Recorda que um dos pontos de viragem foi um artigo assinado em 2012 pelo crítico gastronómico norte-americano Frank Bruni no The New York Times, que tinha como título “Sorry to Disappoint, but I Ate Well in Berlin” (Desculpem desiludir-vos, mas comi bem em Berlim).

“Tudo o que acontece nesta cidade tem uma relação com a história”, prossegue Christian. “Como o Muro as limitava, as pessoas tinham que ser mais criativas. No Leste não havia infraestruturas de restaurantes e [depois da queda do Muro] as pessoas olhavam para a zona como um diamante em bruto.” Heinz Gindullis é um desses casos, tendo aberto os primeiros bares ilegalmente (assim como o primeiro restaurante) na zona de Mitte, que pertenceu a Berlim Leste.

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Berlim apresenta-se como a capital vegan da Europa dr

Estava-se numa altura em que tudo era possível em Berlim. Ainda hoje, apesar das profundas mudanças (e do aumento das rendas) na cidade, há muita liberdade porque “não é aqui que está o dinheiro a sério”, afirma Christian. “As grandes empresas saíram depois da II Guerra Mundial porque Berlim era uma ilha." E a cidade habituou-se a viver ao seu ritmo próprio e diferente do das outras cidades alemãs, e isso tanto pode significar bares e clubes que se mantêm em festa dia e noite ou, mais recentemente, restaurantes, street food, mercados, e preocupações com a sustentabilidade.

“As pessoas ligadas à música electrónica e aos clubes têm hoje 60 anos”, explica Christian, “temos já uma mudança demográfica e essa é uma das vantagens desta cidade, que está sempre a desenvolver-se e onde ainda nem tudo está explorado.” A esta mudança demográfica juntaram-se os escândalos relacionados com a qualidade da comida, sobretudo da carne, no final da década de 1990. “Aí, muita gente mudou de comportamento. E isso começou sobretudo em Berlim, que sempre teve um estilo de vida alternativo. As pessoas, que aqui têm uma forma de pensar muito política, começaram a querer saber de onde vinha o que comiam e se estavam ou não a destruir o planeta com o que consumiam.”

Encontramo-nos com Dov Selby no bairro de Prenzlauer Berg. Estamos na parte norte da cidade, numa zona que também fez parte da antiga Berlim Leste. “Nessa altura, esta era uma das áreas com mais prédios ocupados de toda a Europa”, conta o responsável pelas tours gastronómicas Fork & Walk (que incluem também uma ligada aos espaços vegetarianos/vegan). “Muitos dos apartamentos estavam decadentes, não tinham água corrente nem electricidade, as famílias a quem o Estado [da antiga República Democrática Alemã] os tinha dado decidiram partir e os squatters vieram instalar-se.”

Olhando para os bonitos edifícios, muitos deles do início do século XX, de tectos altos, chão de madeira, varandas, é difícil imaginar esta zona cinzenta e abandonada, com tinta a cair e janelas partidas, como Dov a descreve. Hoje, Prenzlauer Berg é um dos bairros mais gentrificados de Berlim e também aquele onde se vêem mais casais jovens com filhos pequenos.

O ambiente é ideal para nascerem por aqui projectos como o Friedl, um espaço de barista hipster no qual os donos torram o próprio café, comprado em comércio justo, e que propõe uma escolha entre grãos vindos de diferentes países, com a correspondente descrição de aromas e sabores.

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O café Friedl é uma das paragens da tour Fork & Walk pelo bairro de Prenzlauer Berg dr

É essa a nossa primeira paragem, enquanto Dov, australiano que se mudou para Berlim em 2006 e se confessa um apaixonado por Portugal (e por pastéis de nata), vai explicando o que é o Fork & Walk: “Ligamos a comida com a história da cidade. Provando, vamos percebendo por que é que comemos assim, sobretudo em Berlim, que neste momento tem um conceito tão vanguardista sobre para onde vamos, com tudo o que é vegan, vegetariano, sustentável, desperdício zero. E Prenzlauer Berg foi o início desse movimento vegan.”

Percorremos o bairro e as suas histórias enquanto vamos conhecendo outros projectos. Dov comenta a certa altura que, se o número de restaurantes vegan é crescente, é ainda incomparável com o de restaurantes vietnamitas, que servem também muitos pratos vegetarianos e são perto de 15 mil em toda a cidade.

Quando chegou a Berlim, há 12 anos, “a comida não era fantástica” e o restaurante vegan que existia era uma espécie de “nave espacial”. As coisas, confirma, “começaram a mudar nos últimos cinco anos, mas foi sobretudo nos últimos três que houve uma mudança maciça”. E se, no início, ser vegan tinha o peso de implicar uma mudança de vida, hoje, com a ideia da flexibilidade, tudo é mais fácil. “Há muitas pessoas que dizem que não querem necessariamente ser vegan, mas querem comer menos carne e de forma mais sustentável.”

Patricia Weil não optou pela flexibilidade. Tornou-se vegan e está totalmente convertida a essa forma de viver, a tal ponto que decidiu, com duas amigas artistas, abrir um restaurante com esse tipo de comida, o Wilde Küche, em Kreuzberg. “Quando me tornei vegan, fi-lo como um teste, queria saber como me sentia e depois apercebi-me de quanta carne e produtos derivados dos animais andava a comer. Nunca tinha pensado muito nisso. E foi incrível a forma como o meu corpo mudou, sentia-me leve, tornei-me uma pessoa muito mais feliz. Percebi que não podia continuar a comprar num supermercado normal porque está tudo cheio de açúcar e de produtos animais.”

Experimentou por seis meses e no final decidiu continuar por mais seis. “Demorou cerca de um ano para o meu sistema mudar completamente, a minha pele mudou, livrei-me de gorduras desnecessárias. Sinto-me muito mais calma, já não tenho instintos agressivos”, diz, visivelmente entusiasmada.

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O Wilde Küche, que abriu há cerca de um ano, tem como base a ideia de que “somos alimentados pela luz” porque “é pela luz que a planta cresce e quanto mais curto for o caminho entre o momento em que se corta a planta e o momento em que é comida, e quanto menos a cozinharmos, mais luz ela tem dentro”.

Mas o restaurante quer chegar a um público não exclusivamente vegetariano ou vegan. “Agora as coisas estão melhores, mas houve um tempo em que eram vegan contra carnívoros… eu acredito que podemos todos aprender uns com os outros. Por isso, pensámos que queríamos um restaurante ao qual as pessoas que comem carne pudessem vir e comessem os vegetais, que aqui se tornam as estrelas do prato.”

Para atrair essa clientela habituada a comer carne, trabalham, por exemplo, com um “talhante” holandês que lhes fornece produtos semelhantes à carne: galinha feita a partir de proteína de soja, “que tem a textura e o sabor de galinha”; “atum” feito de tremoceiro e alga nori “que lhe dá o sabor a peixe”. Há, explica Patricia, “pessoas que dizem que querem comer menos carne, mas não conseguem comer apenas um prato de vegetais, por isso criámos este tipo de opções.”

Sophia Hoffmann, que se tornou vegetariana inicialmente por não suportar a ideia do sofrimento dos animais, tem uma visão diferente de um prato vegetariano. “Quando comecei, fazia mais aquilo a que chamamos comidas de substituição”, explica. “Somos criaturas de hábitos, crescemos com pratos que tinham carne, hidratos de carbono e alguma salada e tentamos recriar isso. Usava produtos de soja, seitan, mas tentava dar a minha assinatura porque gosto de comida colorida e divertida, gosto de brincar com cores naturais, por isso coloria o pão, a massa.” A certa altura compreendeu, contudo, que não era esse o caminho que queria seguir e fugiu “da ideia de termos um pedaço de ‘carne’ e acompanhamentos num prato”.

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Um dos pratos vegan de Sophia Hoffmann dr

Nos últimos tempos começou também a explorar o não desperdício (zero waste) e hoje faz workshops para ensinar as pessoas a aproveitar tudo dos alimentos, assim como os restos que têm no frigorífico – as receitas que entretanto criou serão o tema do próximo livro.

Patricia Weil acredita que o veganismo “não é uma tendência, está aqui para ficar”. De todas as pessoas que conhece que mudaram a dieta, deixando a carne e os produtos de origem animal, “nenhuma voltou atrás e estão a descobrir uma qualidade de vida tão maior que não há razão para mudar de novo”. Por isso, hoje em Berlim “o movimento está a crescer a todo o momento e amigos que vêm da América dizem ‘meu deus, é extraordinário, em todo o lado é vegan, vegan, vegan”.

Também ela está convencida de que não é por acaso que isto acontece em Berlim. “Aquilo que a cidade sempre representou foi arte e liberdade, a música foi sempre muito importante, houve sempre espaço para artistas, era possível viver aqui com pouco dinheiro e é bom para os conceitos vegan porque ainda é barato comparado com outras cidades. Por isso há tanta gente a fazê-lo e a dizer ‘eu quero mudar o mundo’”. Esta é a grande festa – e está apenas a começar.

A Fugas viajou a convite de Visit Berlin

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