Que História devemos ensinar?

É de lamentar que o Conselho da Europa faça recomendações sem saber o que fazem os professores com os seus alunos.

Que há muitas versões da mesma História e que podemos selecionar aquela que mais nos convém ou que mais nos agrada é um facto. Que a própria História nos mostra como a manipulação do passado pode servir para legitimar ou fundamentar interesses, também é verdade.

O recente relatório contra o racismo e a intolerância do Conselho da Europa trouxe a debate, mais uma vez, esta questão – Que História devemos ensinar? –, exortando “as autoridades a reforçar e tornar obrigatória a educação para os direitos humanos e a igualdade” e a “repensar também o ensino da história e, em particular, a história das ex-colónias” com o objetivo de combater o ódio, o racismo e a discriminação. Neste sentido, “as autoridades deveriam ainda melhorar os manuais escolares seguindo estas linhas de orientação [...].”

Para além desta mensagem direta, que inflamou os ânimos nas redes sociais, há que refletir na mensagem implícita, que atesta a crucial importância do ensino da História e dos livros escolares na formação dos futuros cidadãos, sem esquecermos o papel dos professores de História como os principais agentes deste processo. E, nos tempos que correm, esta mensagem não deixa de me parecer paradoxal, uma vez que as tais “autoridades” têm, ao longo dos últimos anos, retirado valor à História na matriz curricular do ensino básico, desprestigiado os livros escolares e maltratado os professores.

Se os discursos políticos apregoam o valor das Ciências Sociais e Humanas, considerando que nem só de Português nem de Matemática se faz um cidadão, na realidade, as sucessivas reformas curriculares, incluindo a que está a ser implementada, têm retirado carga horária à História. Perdem-se 45 minutos aqui, outros 45 ali, porque as “autoridades” ou as escolas, no exercício da sua autonomia, definem outras prioridades. E, claro, o que ouço frequentemente dos meus colegas é que “não há milagres”. No conjunto de um ano letivo, aquelas perdas têm um peso brutal e são determinantes no tipo de trabalho que se pode fazer em sala de aula, na profundidade e na continuidade que se pode dar a certos conteúdos para que daí resultem aprendizagens significativas, mudanças de mentalidade e de comportamentos. E, depois, cada escola terá a sua experiência para contar, porque a carga horária da História tem de ser conquistada, numa disputa entre disciplinas pelos minutos que as “autoridades” atribuem globalmente às Ciências Sociais e Humanas.

Mesmo com estes constrangimentos, os professores não ignoram os temas apontados no relatório do Conselho da Europa, porque em História eles são incontornáveis. E, por isso, à pergunta lançada no início deste texto, avanço com um conjunto de possibilidades de resposta, todas elas indispensáveis e complementares.

Devemos ensinar a História dos factos, localizados no tempo e no espaço, porque isto serve de suporte, de esqueleto.

Devemos ensinar a História dos protagonistas, individuais e coletivos, triunfantes ou oprimidos. Encher a História de gente, dar-lhe rostos, humanizá- la. É preciso despertar empatias, algo cada vez mais importante quando nos surgem alunos que reagem com indiferença a momentos dramáticos e hediondos da História.

Devemos ensinar a História dos contextos, das explicações, dos porquês, uma vez que lhe dá substância, transforma-a num corpo cheio de vida, ao proporcionar o entendimento do presente a partir do passado. Contudo, esse passado não pode ser analisado com os olhos de hoje, sob pena de se fazer um branqueamento da História ou de a narrarmos de forma preconceituosa, de que resultariam efeitos perversos na formação dos alunos. Explicar-lhes o pioneirismo português “na descoberta do novo mundo” e de quanto isso nos deixa orgulhosos não impede que se mostre a crueza da escravatura e a discriminação racial no período do colonialismo. Devemos ensinar a História da evolução das mentalidades, da conquista de valores universais, em defesa dos quais mostramos como práticas tidas como normais noutros tempos se abominam nos dias de hoje. Estas são as linhas que sigo na produção dos livros escolares ou de outros recursos educativos.

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Neste sentido, é de lamentar que um relatório, com a chancela do Conselho da Europa, faça recomendações sem ter feito a devida análise da situação da disciplina e dos manuais escolares e sem saber o que fazem os professores com os seus alunos ao abordarem temas como o colonialismo, a escravatura, o racismo ou os direitos humanos. Se o tivesse feito, saberia o quanto se faz apesar dos constrangimentos, saberia que os manuais já tratam estes assuntos e que não se mudam por vontade dos autores nem por vontade das editoras. O Ministério da Educação é o responsável pela definição dos programas curriculares de todas as disciplinas dos ensinos básico e secundário, bem como pela regulação do livro escolar, inclusive no que concerne ao calendário de produção e de adoção.

E se soubessem tudo isto, talvez a recomendação fosse exortar as autoridades a reforçar o ensino da História, no ensino básico, com a recuperação de tempos letivos, e tornar obrigatória a educação ou a literacia histórica no ensino secundário, quando os alunos ganham outra consciência do que se passa à sua volta e têm outra maturidade para compreender a importância do que a História lhes pode ensinar. Os sobressaltos políticos e sociais do mundo contemporâneo provam que esta recomendação faria todo o sentido. Afinal, aqueles que não aprendem com a História estão condenados a repeti-la. E esta é também uma História que devemos ensinar.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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