Comandos: “Quando não fazíamos bem, éramos castigados”

Hugo Abreu e Dylan da Silva morreram na sequência da Prova Zero do curso 127. Julgamento de 19 militares prosseguiu nesta quinta-feira com audição dos pais de Dylan da Silva e do instruendo Rodrigo Seco.

Foto
19 militares estão a ser julgados Daniel Rocha

No grupo de graduados do Curso 127 dos Comandos, todos os dez instruendos se sentiram mal. O grupo incluía Hugo Abreu, o jovem de 20 anos que morreu no próprio dia 4 de Setembro, e Rodrigo Seco, que nesta quinta-feira contou em tribunal o que viu nesse dia em que as temperaturas ultrapassaram os 40º graus no Campo de Tiro de Alcochete, onde decorreu a Prova Zero. Rodrigo Seco foi um dos oito instruendos transferidos para o Hospital das Forças Armadas, porque o seu estado também inspirava preocupação. Dylan da Silva, que viria a morrer mais tarde, foi transferido de urgência para o Hospital do Barreiro.

Quando, ainda na manhã do dia 4, os primeiros instruendos deste grupo deram sinais de que já não aguentavam, a resposta dos instrutores responsáveis, o tenente Hugo Pereira e o primeiro-sargento Ricardo Rodrigues, foi mandá-los prosseguir. Alguns foram castigados por não fazerem a instrução com o grau de empenho exigido, contou Rodrigo Seco. Tinham de rastejar, rebolar, atirar-se para as silvas quando não faziam bem o exercício, ou quando perguntavam se podiam beber água. “Não fazíamos bem, éramos castigados.”

Rodrigo Seco era um dos 67 instruendos do Curso 127 e é, como tal, um dos 67 que a acusação qualifica de ofendidos no processo que tem 19 arguidos, todos militares, instrutores ou responsáveis do curso, acusados de abuso de autoridade por ofensa à integridade física. O jovem constituiu-se assistente no processo, juntamente com os pais de Hugo Abreu e de Dylan da Silva, os dois recrutas de 20 anos que morreram na sequência desse primeiro dia da prova mais temida dos cursos de Comandos — a Prova Zero. Rodrigo Seco deixou o curso de Comandos quando teve alta do hospital e ficou num primeiro momento na Carregueira. Hoje já não faz parte do Exército e pede uma indemnização de 40 mil euros por danos sofridos aos instrutores acusados — que podem ou não ser condenados.

Os pais de Hugo Abreu e Dylan da Silva pedem no conjunto 700 mil euros. Os primeiros serão ouvidos na próxima quinta-feira. Lucinda Araújo e Vítor Silva, pais de Dylan da Silva, foram ouvidos nesta quinta-feira. Contaram como viram o filho chegar a casa com marcas de agressões durante o estágio nas semanas que antecederam a Prova Zero.

“Não era normal”

Iniciado o curso, os pais não tinham notícias, contaram os pais de Dylan. “Recebi um telefonema do médico, na segunda-feira de manhã [5 de Setembro] dizendo que o meu filho tinha entrado em falência multiorgânica e tinha sido internado no hospital do Barreiro”, contou Lucinda Araújo. “Nunca me deram esperança de que o meu filho recuperasse.”

Ainda nesse hospital — antes de ser transferido para o Curry Cabral em Lisboa onde veio a falecer no dia 10 de Setembro — o médico que assistiu Dylan da Silva disse ao pai que “nunca tinha visto nada assim”. “Disseram-me para tirar fotografias, porque não era normal”, acrescentou Vítor Silva. Do Exército apenas receberam o contacto de uma psicóloga que os acompanhou nos primeiros tempos depois da morte do filho.

Naquela que foi a terceira audiência do julgamento, que se realiza no Tribunal Central Criminal no Campus da Justiça, em Lisboa, Rodrigo Seco começou por se mostrar reservado, mas ao fim de algumas perguntas relatou em pormenor os últimos momentos em que viu Hugo Abreu cair no chão, não reagir, apagar-se, e mesmo assim ser forçado a cuspir terra que um instrutor lhe terá colocado na cara. Contou que o jovem se engasgou, que lhe faltava o ar e ficou prostrado. É a última imagem que guarda do seu amigo Hugo Abreu.

Entre a meia-noite e o início da tarde Rodrigo apenas tinha sido autorizado a beber oito tampas de água do cantil, em dois momentos distintos – quatro tampas depois da marcha inicial à noite, e outras quatro a meio da manhã na passagem de uma instrução para outra (da ginástica educativa para a ginástica de aplicação militar)

A certa altura informou os instrutores do seu grupo que não se sentia bem. Foi-lhe dada indicação para prosseguir. Já sentia tonturas, via tudo à roda. Não tinham relógio e desde a véspera. Ele e três colegas do mesmo grupo – todos com sinais de não estarem a reagir bem à instrução – só se aperceberam que não tinham almoçado quando um amigo lhes disse que já tinha almoçado.

Lembra-se de a dado momento ser levado com outros instruendos para as tendas e não para a enfermaria. Na viatura que os transportava, Hugo Abreu revirava os olhos. “O camarada Garcia chamava-o e ele não reagia a nada. Ao Silva abriu-lhe a boca porque ele estava a querer enrolar a língua”, prosseguiu Rodrigo Seco que também seguia prostrado nessa carrinha.

Recorda-se do que viu e do momento em que a viatura parou e o primeiro-sargento Rodrigues [que ia na cabine] entrou. “Alguém lhe disse que o Abreu não estava bem.” E o instrutor? “Deixou-se ficar, dizendo que o Abreu estava bem e perguntou ao camarada: ‘Mas tu agora és enfermeiro?’” Lembra-se ainda do momento em que “o camarada Silva caiu para o lado e deixou de reagir.

Hugo Abreu morreu às 21h45 desse dia. Dylan da Silva morreu seis dias depois.

Sugerir correcção
Comentar