As tangas da tropa-fandanga

A pantomina da descoberta das armas entrará para a antologia das operações mais perigosas do nosso Exército.

Uma coisa os portugueses já perceberam nesta história de Tancos: independentemente do poder político, o Exército não tem estado à altura do que lhe é exigível. Desde o início que nada bate certo e nada cheira bem.

O lacónico comunicado com que o Exército transmitiu à nação o assalto já tinha as características de indeterminação e opacidade que têm caracterizado todo este processo: “O Exército informa que foi detectada ontem ao final do dia a violação dos perímetros de segurança dos Paióis Nacionais de Tancos, à qual se associa o arrombamento de dois paiolins. Verificou-se o desaparecimento de material de guerra, especificamente granadas de mão ofensivas e munições de calibre 9 milímetros. Os incidentes foram detectados por uma ronda móvel, elemento do sistema de segurança dos paióis.”

Deste críptico comunicado ficámos, na altura, a saber que o Exército não sabia quando tinham sido violados os perímetros de segurança, quando tinham sido arrombados os dois paiolins, quantas e quais as armas que tinham desaparecido. A partir daí, a saga das meias verdades e das ocultações não mais teve fim.

A pantomina da descoberta das armas entrará para a antologia das operações mais perigosas do nosso Exército em defesa da soberania nacional deste século. Os militares da GNR que colaboraram nesta delicada operação quase recebiam um louvor, provavelmente por actos de heroísmo em teatro de guerra.

A pantomina do chefe do gabinete do ministro da Defesa ao não descortinar a encenação montada pela Polícia Judiciária Militar no memorando, que, à cautela, levou para sua casa, entrará para a antologia das operações mais sofisticadas de contra-inteligência caseira do nosso Exército.

O post no Facebook de um dos militares arquitectos da arriscada recuperação das armas entrará na antologia das declarações heróicas e mesmo místicas do nosso Exército, a lembrar um Santo Condestável: “Não sou criminoso nem tão-pouco os meus camaradas de armas o são. Somos militares. Cumprimos ordens. (...) A salvaguarda dos interesses nacionais é sempre superior aos interesses individuais. Tenho um misto de sentimentos. Estou arrependido mas de consciência tranquila.”

A divulgação pelo Ministério da Defesa de que um andar dos serviços sociais do Exército estava arrendado, para habitação própria, a um filho deste arquitecto militar, que por sua vez o rentabilizava através da plataforma de alojamento temporário a turistas Airbnb, entrará para a antologia das jogadas políticas de retaliação ministerial. Já o próprio facto de o andar estar arrendado a um filho de um militar e de estar a ser rentabilizado não parece surpreendente, nem entrará para qualquer antologia; provavelmente, um levantamento sério e exaustivo — que não seja efectuado pela Polícia Judiciária Militar — das situações das casas pertencentes aos serviços sociais das Forças Armadas irá detectar situações, no mínimo, folclóricas. E até a recente demissão do chefe do Estado-Maior do Exército tem duas explicações: uma para civis e outra para militares!

Não tenhamos ilusões: podemos bater no peito e afirmar repetidamente que o prestígio do Exército — uma instituição secular — não está abalado, mas não é verdade. Aos olhos dos portugueses está abalado. Referiu o presidente de uma associação de oficiais das Forças Armadas, o “clima intolerável de suspeição permanente sobre as Forças Armadas”.

Intolerável? Suspeição permanente? Mas quem praticou actos intoleráveis? Quem não os procurou esclarecer devidamente, nomeadamente em termos disciplinares? Quem não assumiu as suas responsabilidades senão quando a isso foi obrigado? Os comandos militares responsáveis pela segurança dos paiolins ao tempo do seu arrombamento, o que lhes aconteceu? Foram condecorados? Pelo menos, sabemos que o ex-ministro da Defesa condecorou um dos arguidos do processo da recuperação das armas, pela “excelência do seu desempenho profissional, ao longo dos últimos dois anos, nas funções de investigador criminal da Polícia Judiciária Militar”

E a Polícia Judiciária Militar? Não seria a altura de ganharmos alguma eficácia na gestão das nossas Forças Armadas, servirmos melhor a justiça e pouparmos algum dinheiro? Talvez não...

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