Um cheque em branco para o capitão Bolsonaro

No Brasil, a eleição de um representante ultradireitista ganha contornos dramáticos, porque ainda não consolidamos direitos e garantias nem justiça social, como em países desenvolvidos.

Mal sentimos o gosto doce da democracia e já corremos o risco de perdê-la. Mas ao contrário de 1964 – ano em que os tanques e as baionetas, sustentando um golpe militar, violentaram com ferocidade o Estado de Direito e a liberdade – em 2018, o autoritarismo pode retornar ao Brasil carregado nos braços do povo com a eleição à presidência da República do capitão reformado do Exército, Jair Bolsonaro.

A exemplo do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, do presidente da Turquia, Recep Erdogan, e do presidente americano Donald Trump, Bolsonaro é produto de uma corrente política reacionária que encontrou ambiente fértil para prosperar em sociedades fortemente conservadoras, fartas com a corrupção e desencantadas com establishment, como a brasileira.

Mas no Brasil, a eleição de um representante ultradireitista ganha contornos dramáticos, porque ainda não consolidamos direitos e garantias nem justiça social, como em países desenvolvidos. Somos uma jovem democracia, com leis penais e tributárias cheias de buracos e brechas que fomentam privilégios, a impunidade e a corrupção, um país com profunda desigualdade social, em que os mais pobres ainda não dispõem de proteção social e cujos órgãos de polícia, de fiscalização e controle são deficientes. Ao contrário dos países europeus, em que o welfare state é um valor inquestionável e inegociável mesmo por lideranças conservadoras, no Brasil, eleger Bolsonaro é sepultar o pouco que avançamos nos campos social, político e ambiental.

E tem mais: como Bolsonaro não firmou qualquer compromisso de campanha com a Nação, o eleitorado estará passando um cheque em branco para que governe do jeito que bem entender. Nada será surpresa. De nada poderá ser cobrado, porque os eleitores de Bolsonaro não conhecem suas propostas. Não conhecem sua plataforma de governo nem suas ideias para a segurança pública, para a educação, para a saúde, para o meio ambiente, para a política externa nem para a economia, porque simplesmente ele não as tem. Sua campanha está fincada em quatro retóricas: na religião, numa agenda moralista, em armar a população e em dar carta branca para a polícia passar o fogo em bandido. Não por acaso, recusa-se a enfrentar seu oponente, Fernando Haddad, do PT, em debate público. Quer mascarar seu conteúdo vazio, o seu despreparo.

Mas pelos arroubos e bravatas desferidos ao longo de sua vida de militar e como deputado federal, é de se esperar um governo revisionista, ressentido, revanchista, de retrocesso político-social, de violência do Estado, de intolerância, de corrupção e de impunidade. É fácil prever os danos de um eventual governo de Bolsonaro.

A começar por nossas reservas ambientais, que serão extintas. Bolsonaro, por coerência, seguirá o modelo adotado pelos governos militares, aos quais tece elogios, que em seus 21 anos promoveram inúmeros projetos de infraestrutura, ignorando estudos de impacto ambiental com a perda irreversível de ecossistemas inteiros. O capitão governará com a ala mais retrógrada do agronegócio no Congresso Nacional. Já flerta com a UDR (União Democrática Ruralista), a truculenta organização de fazendeiros que defende o desmate legal da Amazônia, a extinção de leis ambientais e do armamento de proprietários de terra.

Não se pode falar em desmatamento predatório como política de governo, sem pensar nos parques indígenas. Bolsonaro defende a exploração econômica em terras demarcadas e protegidas pela Constituição, o que colocaria em risco a preservação de centenas desses povos étnicos. Na mira do capitão, estão também os quilombolas – habitantes de comunidades negras rurais formadas por descendentes de africanos escravizados –, contra quem o candidato do PSL já manifestou seu ódio e desprezo gratuito ao acreditar que eles não servem nem para procriar.

Os jornalistas serão perseguidos violentamente pela milícia digital de Bolsonaro. Na campanha eleitoral deste ano, há mais de uma centena de registros de intimidações e assédios digitais nas redes sociais contra repórteres que assinaram matérias negativas sobre o capitão reformado. É uma amostra do que será o patrulhamento contra a liberdade de imprensa. Em seu governo, esses ataques recrudescerão sob a estrutura e a proteção do Estado.

As células raivosas de fake news de Bolsonaro se agruparão numa força indestrutível, infiltrando-se nos órgãos de governo, configurando-se num Estado paralelo. As notícias jornalísticas, os fatos e a verdade serão corrompidos e varridos da sociedade. O juízo de valor das pessoas será construído a partir de mentiras produzidas industrialmente por máquinas de propaganda fascista, como vem sendo feito na campanha do candidato do PSL.

A liberdade de expressão estará acuada pelo medo e a verdade será pervertida pelo aparato estatal, uma vez que os órgãos de imprensa também serão coagidos a se silenciar, sufocados por normas regulatórias ou desqualificados por tropas digitais e sites de notícia financiados pelo Estado. Assim como Donald Trump, que se comunica diretamente com seus eleitores pelo Twitter, Bolsonaro também irá ignorar o jornalismo profissional para falar com a sociedade por meio das redes sociais, principalmente o Whatsapp. No máximo, cooptará alguns veículos tradicionais – versões brasileiras da Fox News de Trump – para conferir certa credibilidade a suas ações.

As manifestações artísticas consideradas ofensivas, conforme a moral e os costumes, serão igualmente perseguidas. Exposições e apresentações sobre a diversidade ou que questionem crenças serão criminalizadas por grupos radicais, como o Movimento Brasil Livre, uma gangue reacionária de apoio a Bolsonaro com grande poder de mobilização.

Assim como aconteceu na ditadura militar, a corrupção chegará a níveis inimagináveis, porque a imprensa enfraquecida e desprestigiada, como canal de denúncia, não terá forças e tranquilidade para noticiar os roubos e os crimes dos capangas de Bolsonaro. Assim também, os órgãos judiciais e de controle, como Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União, Controladoria Geral da União e Receita Federal, não estarão livres do assédio do governo, que jogará a população contra instituições que ousarem agir com independência e de maneira republicana, além de adotar medidas administrativas e constitucionais para retirar recursos e prerrogativas funcionais.

A Polícia Federal perderá sua independência de investigação. Em vez de combater o narcotráfico e a corrupção, vai voltar às suas origens de polícia política do regime militar, para perseguir, investigar e chantagear adversários.

O funcionalismo perderá seus direitos, como a estabilidade no emprego, e terá seus salários aviltados. Assim como o servidor público, os trabalhadores da iniciativa privada perderão toda proteção legal. Os poucos direitos que lhes restaram da reforma trabalhista do presidente Michel Temer poderão ser extintos pelo Legislativo, de perfil altamente conservador. Parlamentares, eleitos com o dinheiro dos setores mais atrasados do empresariado brasileiro, farão parte de sua base de governo e não terão dificuldades em aprovar novas mudanças nas leis trabalhistas, de maneira que as empresas estejam livres para explorar a força de trabalho de maneira vil e desumana.

A educação e a saúde receberão tratamento raso. Na cabeça de Bolsonaro,  basta ter emprego para se ter saúde. Pensa também em acabar com o ministério da Educação, apesar de o Brasil estar entre os países com pior desempenho na área no mundo. O currículo escolar em seu governo vai priorizar a moral cívica e a religião, além de retirar disciplinas que ensinem os alunos a pensar de maneira crítica, como filosofia, história e sociologia.

Já o programa do capitão reformado para acabar com a violência no Brasil se restringe a dar aos operadores de segurança licença para matar em qualquer circunstância, logo no Brasil, onde a polícia é a que mais mata no mundo. Vai também revogar o Estatuto do Desarmamento para armar uma população violenta e deseducada, que mal sabe usar com civilidade uma lixeira. Para ele, o cidadão armado é a primeira linha de defesa de um país.

Viver e viajar para o Brasil será perigoso, porque a violência não virá somente da bandidagem, mas de seu vizinho e de gangues supremacistas, misóginas, racistas instigadas e inspiradas no discurso de ódio e de intolerância de Jair Bolsonaro, que naturaliza esse comportamento social doentio ao falar abertamente em exterminar fisicamente seus opositores. O assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê por um eleitor do capitão e a agressão de nazistas que riscaram a suástica na pele de uma mulher na região sul do país são pequenas demonstrações do que virá por aí, caso Bolsonaro seja eleito. O Brasil caminha rápido para ser um país distópico. Definitivamente, Deus não é brasileiro.

Luís Humberto Carrijo é jornalista, escritor, comunicador, professor de comunicação e CEO da agência Rapport Comunica. É autor do livro O Carcereiro – O Japonês da Federal e os presos da Lava Jato

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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