Conto de fadas de Brecht em rock’n’roll

Em encenação do alemão Peter Kleinert, A Alma Boa de Sé-Chuão, em cena no Teatro Joaquim Benite, em Almada, até 11 de Novembro, mostra-se como um conto de fadas ético e político.

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Rui Mateus
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Já não é a primeira vez que o encenador alemão Peter Kleinert se atira ao texto A Alma Boa de Sé-Chuão, que Brecht escreveu entre 1938 e 1941. Mas, desta vez, quando se preparava para revisitar a obra com a Companhia de Teatro de Almada, a imagem dos três deuses que visitam a província chinesa de Sé-Chuão, em busca de alma pura e bondosa num mundo feio, malsão e doente, pareceu-lhe trazer atrelada a dos omnipresentes trolleys, essas malas de viagem rolantes que enchem as cidades de um ruído que parece querer identificar “intensa actividade turística na zona”.

A provocação às portas de Lisboa, cidade em relação complicada com o equilíbrio entre o ranking de atracção internacional e a capacidade de fixar os seus habitantes, é evidente na decisão de fazer chegar estes três deuses a Sé-Chuão com os inevitáveis trolleys. Mas a imagem, na verdade, evoca em Kleinert uma outra, relacionada sobretudo com a súbita aterragem destes corpos em território que lhes é estranho. “Essas malas lembram-me a crise na Grécia”, explica ao PÚBLICO dias antes da estreia esta sexta-feira de A Alma Boa de Sé-Chuão no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, onde estará em cena até 11 de Novembro. “Eles chegavam a cada três ou quatro semanas, vindos de Bruxelas, de avião, com estas malas e os seus fatos impecáveis.” O voo Bruxelas-Atenas, como é fácil de ler, levava a bordo a mal-amada troika.

E o que tem a troika que ver com o texto de Brecht? Ora os três deuses começam a peneirar a bondade dos habitantes de Sé-Chuão procurando quem lhes possa dar guarida e providenciar um tecto provisório. Claro que, como não tardam a dizer-nos, “uma pessoa se quiser alugar um T0 na cidade vê-se grega.” É uma das poucas frases enxertadas nas palavras manejadas por Brecht, mas é do dramaturgo alemão a ideia de que estas entidades divinas se classifiquem como “observadores”. Ou seja, lavam as mãos dos podres que abundam pelo mundo, rejeitando qualquer responsabilidade sobre a escassez de boas almas à sua volta.

“Isso, para mim”, diz Kleinert, “é uma associação que faço a todos os políticos que são cegos à realidade, pouco disponíveis para os problemas das pessoas.” E exemplifica ao garantir que, na Alemanha, a atitude dos governantes se resume a um reconhecimento de que os problemas existem, “mas é tudo tão complicado e complexo” que só após uma longa ponderação se pode agir. Sem querer explicitar associações com a situação por demais conhecida da crise dos refugiados, o encenador não nega que gostaria que o público avançasse por sua conta com essas comparações que ajudam o texto a ancorar na realidade de hoje.

Na verdade, resume, toda a peça se encaminha para nos colocar a questão “Será que posso ser bom num mundo mau?”. “Todos nós, na Europa, devemos estar conscientes da nossa riqueza e perguntarmo-nos se queremos fechar as fronteiras ou tentar encontrar uma solução para o mundo. Essa é, no meu entender, a grande questão do nosso século.”

Brecht, como é evidente, estava muito longe de 2018. Mas essa mesma reflexão sobre o que pode a bondade em tempos de falência moral, o que pode um gesto apaziguador quando tudo à volta está a saque, o que pode a firmeza ética perante o descalabro e o desmando colectivo, colocava-se já no gesto de Chen Te (Rita Cabaço), prostituta que se dispõe a acolher os três deuses, quando todos os outros lhes negam um pedaço de chão. O que Chen Te não pode então imaginar é que esse vislumbre de empatia terá como contrapartida uma mão-cheia de dinheiro que, como compete aos deuses, há-de cair do céu e recompensá-la.

A contemporaneidade

De bolsos cheios, Chen Te muda de vida, compra uma tabacaria e, aos poucos, vai-se vendo rodeada de gente que lhe pede ajuda e asilo. Chen Te, alma boa, distribui comida todos os dias à frente da loja, coloca a sobrevivência da loja em perigo e, apesar do seu alter-ego Chui Ta, um primo que surge para se responsabilizar pelas contas com a frieza que lhe falta, o negócio não parece ter um futuro promissor.

Todo este “conto de fadas com conteúdo político e ético”, como o descreve Peter Kleinert, vai avançando empurrado por um conjunto de actores que são também músicos e que imprimem à peça de Brecht um andamento de concerto rock (a partir de música de Pedro Melo Alves). Peter Kleinert – que, em 1981, dirigiu em Portugal a peça A Excepção e a Regra – leu algures que Brecht tinha por intenção fazer um musical com o texto desta peça, com composições de Kurt Weill, plano que ficou por cumprir. Mas perscrutando o seu interior, focando-se nos muitos elementos musicais constantes já da peça original, o encenador quis “usar os motivos musicais para tentar fazer algo mais ou menos contemporâneo”. Mesmo sabendo que a quotação da moralidade está pelas ruas da amargura por estes dias – e que a contemporaneidade, só por isso, está garantida

A partir dos materiais compostos por Paul Dessau em 1947/48, e validados por Brecht, Melo Alves esboça uma travessia musical que tanto pisca o olho às canções bonitinhas e com trejeitos épicos, quanto se atira de cabeça a desabafos em forma de punk, tornando a peça num ruidoso conto de fadas. Um conto de fadas mais cru e literal do que as duas anteriores versões que Kleinert apresentou da mesma peça: em Pittsburgh, a trabalhar com estudantes numa universidade privada norte-americana, teve de assumir uma versão “mais moralista”, uma vez que precisou de convencer aqueles actores de um meio privilegiado que as questões da peça eram válidas; em Berlim, com estudantes da Escola Ernst Busch, cuja distância para Brecht parecia insanável, a peça tornou-se mais irónica. Em Portugal, confessa, “não houve muita discussão”. As questões levantadas por Brecht estavam já mais próximas de toda a equipa.

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