Saudades da Céline com acento, revisionismo com Malcolm Gladwell e... MeToo

Horas de YouTube são uma excepção, mas Phoebe Philo também o era; um podcast excepcional; um movimento mais inclusivo.

Foto
John Lamparski/WireImage

Os podcasts são um vício — e até dizem que podem ser uma gateway drug para esse outro devorador de pavilhões auriculares que são os (bons) audiolivros, mas para já consomem-se histórias em versão revisionista. Ainda por cima, chegando-lhes tarde, há a vantagem de haver doses generosas da Revisionist History de Malcolm Gladwell, sobre os temas mais extraordinários ou ordinários. O jornalista e autor canadiano lançou em Maio os mais recentes dez episódios do total de 30 já disponíveis sobre os lapsos linguísticos de Elvis Presley (aquela música que ele nunca, nunca conseguiu cantar igual) ou a abaladora mudança da forma de fritar as batatas fritas do McDonald’s, passando pelo “paradoxo da sátira”, de Harry Enfield a Jerry Seinfeld. Horas e horas com pessoas, fenómenos ou perspectivas incompreendidas, agora com mais explicações e muitas vezes moldadas por opiniões.

Não é um requiem por um sonho, mas é um memorial por uma mulher. Nas últimas semanas o YouTube tornou-se num invulgar refúgio estético, conceptual e político – a ver desfiles de moda. Mais precisamente a ver desfiles que não o do Inverno 2019 da marca francesa Celine, que perdeu o acento numa medida de rebranding e perdeu o alento para parte do seu público à chegada de Hedi Slimane. O designer da estética rock ‘n’roll dos anos 2000, das silhuetas esguias e dos babydolls decadentes substituiu a britânica Phoebe Philo, voz que falava uma verdadeira e original língua de moda do século XXI. A Céline dela era adulta, democrática e variável, e os desfiles que agora moram na Internet são um in memoriam de um tempo que, sem muitos saberem, foi responsável por libertar corpos não-normativos de mulheres adultas e por esses ténis brancos que todos adoptaram. O contraste com o apaixonado pela Califórnia noir e pela estética Polaroid — de valor próprio, é certo — foi tal que mil think pieces se escreveram depois do seu desfile de estreia na marca. Agora, a silhueta mais solta, confortável, de Philo vive ainda nas ruas, e no que Vanessa Friedman chamou a “paisagem da psique” colectiva. Philo pôs Joan Didion na sua publicidade. Slimane tirou o acento à marca e pôs (outra vez) versões da sua mulher e homem esqualidamente jovens na passerelle. Não há nada de errado nisso. Mas dado o clima político, faz falta o acento. Cerebral. É ir ver ao YouTube.

"A geometria sempre só me confundiu". "Foi um ano de matemática". "Começou com o hipnotizante espectáculo de peças de dominó a cair". Entre números e imagens, assim começam os textos da edição da New Yorker que assinala um ano do momento #MeToo e que analisa e tenta propor caminhos para o movimento MeToo. “A dor masculina e feminina são há muito temas literários fundamentais. Nos livros, tal como na vida, as narrativas da raiva masculina – da Íliada a um discurso de Donald Trump – exigem uma atenção reverencial”, lê-se num deles, sobre como um dos cernes deste clima em que se dirimem versões é a palavra de uma pessoa contra a de outra, e o de como isso é também uma questão literária. Às vezes, a linguagem da ficção pode oferecer pistas para a realidade, e a linguagem, como se lê noutro desses textos, pode incluir armadilhas que tornam um discurso público de justiça numa retórica de exclusão (ou ser distorcida para o que os detractores deste clima consideram ser uma retórica de ódio). É um dos temas da cultura do último ano e passá-lo em revista, de forma crítica, nunca é demais. Porque a mensagem de que não há uma caça ao homem poderoso mas sim uma esperança na mudança de justiça social para todos ainda não passou.

Sugerir correcção
Comentar