A esquizofrenia: o Brasil entre dois turnos

Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer.

Um dos candidatos presidenciais que o Brasil escolheu para o segundo turno é professor. Enquanto ministro da Educação, abriu o ensino universitário para milhões de alunos de baixa renda e, enquanto prefeito de São Paulo, melhorou o trânsito endémico da cidade e foi o primeiro a apresentar uma dívida menor do que a que recebeu.

O outro é um deputado e militar sem méritos que ficou famoso por atacar os direitos humanos, defender o armamento da população e elogiar o único homem declarado torturador pela justiça brasileira.

Diria a lógica que Haddad não teria problemas no confronto com Bolsonaro. Porém, a lógica vale cada vez menos no Brasil desde o “golpe branco” que foi o impeachment de Dilma.

A luta política hoje é uma disputa pelas almas do povo em que as frases de efeito valem mais do que o currículo. E é nas redes sociais em que elas circulam que se escreveu a melhor frase sobre estas eleições. Segundo Carlos Mandacuru, a esquizofrenia brasileira traduz-se hoje em "eleger um fascista de verdade, achando que é de mentira, por causa de um comunismo de mentira que acham que é de verdade”.

Algo como: “Que importa que o Haddad tenha criado uma controladoria autónoma que recuperou quase 300 milhões de reais desviados do município? Haddad é do PT e vai transformar o país numa Venezuela. Só Bolsonaro pode resolver essa situação”.

Na verdade, não é exagerado dizer que Bolsonaro e sua equipa parecem completamente inaptos para resolver qualquer situação. O seu programa de Governo parece um trabalho feito na véspera da data final, as suas propostas são inconsequentes e disparatadas e os atropelamentos da sua equipa económica são constantes.

O grande sucesso de Bolsonaro foi entender o crescimento do antipetismo e construir-se como o homem providencial contra ele. O seu eleitorado fecha os olhos à incompetência, às acusações de desvios de fundos e ocultação de património que varam o seu núcleo duro, ao nepotismo do candidato e ao crescimento suspeito do património da sua família. Nada disso importa, desde que se tire o PT do poder.

Nem todos caíram na esparrela. O Brasil, efetivamente, está dividido nos grupos do Whatsapp.

A mentira é um vírus 
Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer. O compromisso da ubíqua aplicação de mensagens com a privacidade dos utilizadores implica que imagens de uma criança amordaçada com a legenda “Haddad quer legalizar a pedofilia” não possam ser denunciadas. Uma vez solta, a mentira espalha-se como um vírus. E o medo também.

Há dias, um colega disse-me que espera mudar-se para Portugal no ano que vem. Perguntei porquê. “Too gay for Nazi Brasil”. Zanguei-me. “Eles que se ferrem, pá”. Mas não tive resposta para o que veio em seguida: “eu não quero morrer”.

Um exagero? Depois do primeiro turno, pipocaram casos de agressões contra negros, homossexuais, mulheres ou contra quem simplesmente declarou votar PT.

Um mestre de capoeira na Bahia foi assassinado depois de uma discussão política. Um rapaz no Paraná levou com uma chuva de garrafas em cima por usar um boné do MST. Insultos e ameaças de estupro, morte e agressão foram distribuídos pessoalmente e pela Internet. Suásticas apareceram pintadas em paredes de norte a sul do país. E tudo isso foi acompanhado da frase “Bolsonaro 17”.

Não saiu nas notícias o caso da minha amiga que correu assustada para casa depois de um homem que passava de carro lhe gritar: “Sua vadia! Agora é Bolsonaro!”. Ou o do meu amigo bancário que ouviu, de um homem farto de esperar na fila, “cê vai ver só quando eu puder trazer a arma!”. Ou o da minha amiga que, pela primeira vez, tem medo de ser atacada por ter ascendência japonesa. Ou o do meu amigo gay e negro que diz “vamos ter de encontrar novas formas de sobreviver” como se fosse um refugiado de uma guerra.

Depois de anos alimentando um eleitorado à base de frases homofóbicas, racistas e misóginas, o candidato — que disse não ter nada a ver com os ataques — tornou-se o mantra invocado nos crimes de ódio do Brasil, porque a onda que o carrega é, ela própria, uma festa movida a ódio.

Desde Hannah Arendt que sabemos que podemos apoiar alguém assim por ação ou por inação. No Brasil, o sangue que correu já mancha as mãos de Bolsonaro e as dos seus apoiantes, mesmo as dos que “não concordam com tudo o que ele diz” e as dos que acham que ele “é mal preparado, mas tem que ser”.

Viver no medo do presente e do futuro. Esse é o preço para que Fernando Haddad não ganhe? Posso dizer já, com toda a certeza: não vale a pena.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários