#NotUs... ou o Silêncio das(os) Inocentes

Por que não se queixam mais nas redes sociais as mulheres portuguesas de atos praticados contra a sua liberdade e autodeterminação sexual?

Para muitos portugueses, Ronaldo é um herói. Alguns dizem aos filhos: “Joga futebol, esforça-te, imita-o. Se o fizeres tudo será teu: dinheiro, carros desportivos, mulheres...” E os meninos jogam.

Ronaldo é, ao que temos conhecimento, o primeiro português de grande notoriedade aludido no movimento #MeToo no Twitter que, depois da notícia do caso Harvey Weinstein, nos EUA, em Outubro de 2017, rapidamente alastrou ao Reino Unido, à França, à Itália, à Alemanha... mas não a Portugal. Em rigor, Ronaldo aparece nesta onda de protesto contra a violência de género, não enquanto cidadão português, mas como jogador de indiscutível reputação internacional e a queixosa é uma norte-americana, Kathryn Mayorga.

Por que não se queixam mais nas redes sociais as mulheres portuguesas (dado que os homens estão quase ausentes enquanto ofendidos, no movimento #MeToo) de atos praticados contra a sua liberdade e autodeterminação sexual?

Uma explicação possível seria a de que os homens portugueses são diferentes. São corteses, respeitadores e só tocam numa menina com uma flor. Infelizmente não é o que as estatísticas revelam: em 2017, 20.186 homens foram, segundo o INE, registados na PSP e na GNR como suspeitos da prática do crime de violência doméstica contra o cônjuge ou análogo e, de acordo com o Relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas, ocorreram, nesse ano, 20 condenações por feminicídio consumado e 28 pela tentativa da sua prática.

Outra explicação seria a da “cultura da sedução” latina, assente na cortesia e na galanteria, tão diferente da anglo-saxónica em que as relações sexuais são, por vezes, estreitamente reguladas. Basta pensar no que resultaria da aplicação das Sexual Misconduct Rules de algumas universidades americanas ao rescrever do Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco, no século XXI: “Simão Botelho pergunta à sua prima Tereza: Posso beijá-la?” [Tereza recorda o que está escrito nas regras, e decide se consente ou não consente]. Responde: “Pode.” Simão prossegue: “Posso desapertar-lhe o vestido?” Tereza pensa no regulamento e responde, “pode”... Talvez o desfecho fosse menos trágico e Mariana optasse por aprender a nadar na piscina de um dos grandes estádios em Lisboa, em vez de se afogar desgostosa, pela morte de Simão. Seria uma outra cultura, em que frases como “Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da sua janela ao quarto dela”, fariam pouco sentido.

Os padrões culturais invocados em França pela reação ao aludido movimento, por um conjunto de pessoas de que se destaca Catherine Deneuve, apresentam-nos a sedução como um jogo que obedece a regras seculares: em que quase nada é dito expressamente, em que o homem conquista a mulher que se deixa gostosamente conquistar, existindo zonas cinzentas em que não se sabe se há consentimento da parte da mulher. As gerações mais novas (se atentarmos na idade das vítimas nos casos recentemente julgados pelos tribunais portugueses) parecem rejeitar este padrão de relacionamento ainda assente numa hierarquização implícita dos sexos e invocar a paridade também no reduto mais íntimo da esfera pessoal: igual respeito pela liberdade de autodeterminação sexual de ambos, em todos os momentos.

Outra explicação possível, ainda, seria a da reduzida literacia das mulheres portuguesas no plano jurídico: por vezes sentem-se agredidas, mas nem sabem que a lei as protege, por exemplo, em situações em que entram num quarto para ver as vistas da janela e o que se segue são relações sexuais não consentidas. Ou a da sua fraca capacidade económica, uma vez que não é com o atual rendimento médio mensal que uma mulher dispõe, em regra, do tempo e do dinheiro necessários para exercitar, de forma eficaz, os seus direitos. Ou, porventura, do receio de vitimização: se apresentar queixa será censurada pela família, ridicularizada ou mesmo ostracizada pelos amigos... Ou, ainda pior: do receio de que nada aconteça. Exporá a sua intimidade ao fazê-lo, submetendo-se a exames físicos desagradáveis, passará horas em salas de audiências, para, no fim, poder não haver condenação por falta de prova suficiente do ocorrido ou, havendo-a, poder ser suspensa a pena aplicável por se considerar que os arguidos são cidadãos bem integrados nesta nossa sociedade ainda patriarcal e sexista.

Pensemos: uma portuguesa apresenta queixa contra uma pessoa com o estatuto de herói nacional nos tribunais e divulga-a no Twitter, através do #MeToo. O que se segue? Ouvimos, ao longe, na brisa que passa, o silêncio das vítimas inocentes e o ruído das crianças que correm, e correm e correm, nos relvados, com camisolas com o n.º 7 estampado nas costas...

#NotUs será provavelmente o nome do movimento luso em matéria de violência de género.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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