#meconfused

Não é por alguém gritar mais alto algo que não é delito que faz transformar os factos concretos em crime.

Declaração de interesses: tive a honra de ser convidado algumas vezes para participar no Prós e Contras que, em minha opinião, é das poucas coisas que restam de serviço público na RTP.

Por considerar que um espaço de debate aberto e plural é um dos pilares da verdadeira participação cidadã, foi com natural tristeza que li a notícia de que aquele espaço termina em Dezembro. Mais ainda por saber que, com uma equipa muito reduzida, a Fátima Campos Ferreira tem sido capaz de tratar dos mais variados assuntos a cada semana, assumindo-se como verdadeira provedora da opinião pública que deseja ser informada. Espero bem que se não trate de colocar a Fátima “na prateleira”, algo em que a RTP tem sido exímia na sua História.

Vem isto a propósito do programa da passada segunda-feira, em que se discutiram as consequências do “movimento #metoo”. Várias foram as opiniões expendidas das quais discordo, o que é o mais natural e saudável em democracia. O que me motiva a escrever estas linhas é a tentativa de repor algumas afirmações que, de um prisma criminal, são simplesmente erradas.

Com o actual Código Penal de 1982, mas sobretudo com a revisão de 1995, a nossa legislação em matéria de delitos contra a liberdade e autodeterminação sexuais passou a estar a par com as concepções civilizacionais mais avançadas.

Se até 1995 esses bens jurídicos eram protegidos sob o chapéu dos sentimentos de moralidade pública, tratados, portanto, como interesses juridicamente relevantes contendentes com a comunidade no seu conjunto e, por isso, de natureza supra-individual, a reforma aludida operou uma verdadeira revolução coperniciana, passando a considerar – e bem – a liberdade e a autodeterminação sexuais como específicos bens de natureza individual.

Quem sofre coacção, violação, abuso de criança, abuso de pessoa internada, lenocínio, é uma pessoa individual e concreta. Daí também que o delito de violação – ao invés de um projecto de lei peregrino do Bloco de Esquerda, em boa hora chumbado no Parlamento – seja configurado como semipúblico, ou seja, não há promoção processual sem que o/a ofendido/a apresente queixa contra o suposto agente.

Não se trata de qualquer menorização do direito ao livre desenvolvimento da personalidade humana – de que a vida sexual é somente uma dimensão, ao invés do que hoje parece ser numa sociedade em que ela surge sobrevalorizada e em que tudo parece girar em redor do sexo –, mas da assunção clara, baseada nos ensinamentos da vitimologia, de que quem é vítima deste delito tem o direito (que é também empowerment) de não desejar, pelos processos de vitimação secundária, que exista um processo criminal com o cortejo de necessárias revivências emocionais posteriores ao evento traumático.

Do mesmo passo, ao contrário do que ouvimos no dito programa, a importunação sexual, tal como o legislador a modelou por via da alteração de 2015, não criminalizou o “piropo” nem as aproximações típicas de um processo de sedução natural a qualquer relação amorosa, dure ela umas horas ou uma vida, mas somente (para além do que eram os chamados “actos exibicionistas” e de constranger outrem a contacto de natureza sexual), a “formulação de propostas de teor sexual”.

Foi o meio-termo entre uma posição maximalista que desejava, de facto, criminalizar o dito “piropo” e uma outra que considerava que se tratava de uma área em que a função de ultima ratio do Direito Penal não faria sentido. Esse compromisso abriu espaço à caricatura: se alguém disser “quero comer-te toda/o”, a conduta é atípica, isto é, sem relevo criminal, mas se a atoarda for “queres que te coma todo/a?”, aí já haverá crime, por só aí existir uma verdadeira “proposta” e na primeira locução uma simples manifestação de vontade…

Tudo uma questão de semântica e que, para um “importunador encartado”, por certo aconselhará a frequentar cursos de língua portuguesa, por tal significar a diferença entre a punição e a impunidade. Este é apenas um exemplo do extremo cuidado com que se deve legislar em geral e, em particular, no domínio dos crimes que mais contendem com aquele escrínio de íntima irredutibilidade de que todos somos titulares.

Isto dito, usa-se a abusa-se da expressão “assédio sexual”, que começa por não configurar um tipo legal assim designado no Código Penal, sendo o mais próximo a dita importunação sexual – esse OVNI jurídico – ou, em hipóteses mais graves, a coacção (sexual).

Não duvido da importância de movimentos como o #metoo na denúncia de delitos contra poderosos, mas também é hoje um dado adquirido que as proporções que o mesmo vem assumindo e a legião de sequazes seguidores transformam tantas naturais e saudáveis demonstrações de carinho e afecto em crime.

Não é por alguém gritar mais alto algo que não é delito que faz transformar os factos concretos em crime. O efeito está à vista: sem prejuízo da luta empenhada de todas e de todos contra o que efectivamente vulnera a liberdade e autodeterminação sexuais, a polícia dos costumes morais parece querer que ninguém se toque, dê uma carícia, enfim, que demonstre amor e carinho por outrem. Do oito ao oitenta vai uma enorme diferença e a defesa das vítimas – na qual todos estamos na primeira linha – não pode transformar-se numa espécie de assepticismo que nos torne a todos em mecânicos robôs.

É essencial separar o trigo do joio: não fazer julgamentos apressados em praça pública, destruindo a vida de pessoas que, por muito que haja uma decisão judicial absolutória, para sempre carregam um anátema pior que o ferrete das antigas penas infamantes, nem tão-pouco cavalgar a onda do “politicamente correcto” no sentido de, sem informação, afirmar peremptoriamente que algo é um crime sexual.

Há gente a ganhar dinheiro com o #metoo e que somente procura isso mesmo. O dano provocado por essas pessoas é incomensurável, por se aproximar da história do Pedro e do lobo: as verdadeiras vítimas –  aquelas que sofrem dores físicas e psíquicas que em muitos casos nunca ultrapassam e que conduzem a suicídios e destruturações de personalidade – ficam desacreditadas quando se põe tudo no mesmo saco, sem rigor jurídico.

Deixemos à Justiça o que só dela é e ao espaço de entretenimento, das redes sociais, dos ódios e dos aproveitamentos o seu. Só assim respeitaremos o Estado de Direito e, sobretudo, não cobriremos todas e todos com o manto da suspeição de que estão a encenar algo que não aconteceu.

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