Estado da Graça

Temos uma nova ministra da Cultura, saudemos a sua chegada. O que partiu, tenho de o dizer, fez uma triste figura, a sua política foi essa figura triste que fez.

Uma das especificidades do tempo que corre é a proliferação das “posições” em nome do debate, como se a sua inflacção substituisse a sua efectivação. Esta especificidade é alimentada pela velocidade do fluxo “comunicacional”, com todas as suas falsas e verdadeiras notícias numa meada que não é possível desfazer. A novidade, no meio da confusão, não se faz ver, a racionalidade debate-se com a sua própria sobrevivência, morre na praia. O problema que esta entropia sempre cavalgante coloca é, em suma, o da impossibilidade da visão objectiva associada à verdade analítica, fundamentada e fundada no real.

Quando falamos de cultura falamos de quê? De tudo. Portanto falamos de nada. O espectro de responsabilidade efectiva da acção de um Ministério da Cultura é muito amplo - dos patrimónios à criação, sob as suas formas disciplinares e transdisciplinares várias. Para que isso seja reconhecido é necessário reconhecer que são áreas em que a intervenção pública faz sentido — e fazer-lhe coincidir capacidade organizativa transformadora e não apenas reguladora e polício-legal —, como se faz na educação e na saúde. O que um certo juízo liberal dominante tem impedido, seja ele mais contra o “dirigismo” nas artes, seja ele mais “reivindicativista”. Jean Vilar falava de teatro comparando enquanto serviço público com a electricidade a chegar a casa de cada cidadão.

Temos uma nova ministra, saudemos a sua chegada. O que partiu, tenho de o dizer, fez uma triste figura, a sua política foi essa figura triste que fez. Que parta em paz, não temos tempo a perder com este vazio que tão instalado e tão recorrendo à última novidade digital é finalmente um atavismo.

Quais as questões que são de ver com olhos de ver, portanto quais as realidades a desvelar, já que a sobreposição confusa de posições, lóbis, ignorâncias activíssimas, juvenilismos, voracidades, visões esclarecidas, partidárias, apartidárias e etc., dificulta descortinar o que quer que seja e é obra de mais que pinças — sendo o que é necessário fazer sob o signo não da urgência, mas da ultra-urgência. Que este próximo ano não venha a ser portanto mais um ano, como os outros três, para preparar o que virá, já que a ministra só agora chega e tem de “conhecer” os dossiers, etc.

A meu ver uma política cultural é uma coisa, uma política de estímulo às artes outra coisa. A política cultural poderiam ser políticas viradas para a cidade, para os espectadores, complexo humano que inclui tanto o habitué como o não espectador — democracia oblige!  O que significa políticas de acesso aos modos de ler em presença, já que com a net aceder ao que quer que seja, está à mão de cada um, sabendo-se que com tanto mar poluído, navegar é um perder-se que muitas vezes é improdutivo apenas.

A reprodução técnica da obra de arte é agora instantânea e ofusca pela qualidade dos ecrãs e dos pixels, o que permanece singular e único são as artes da presença simultânea — da democracia, da vida ao vivo —, da sala e da cena respirando em comum o que não é nada comum, raramente o é, seja o Tartufo, seja E tudo o resto deves ter visto no cinema (Crimp), o que quer que seja que seja destutelado e não cumpra ditames para-empresariais — obviamente não falamos de rituais de pertença massivos que são eventos do espectacular integrado, o seu funcionamento.

Creio que as vertentes de uma política das leituras deveria assentar numa grande — e ignorada, pertenci à 11.ª comissão, a do Rui Nery, depois dessa outras surgiram… — reforma dos ensinos artísticos. A sua implementação nunca aconteceu e a realidade lá foi remendando o que deveria ter sido reforma estrutural — eu diria, radical — já que com o parto da democracia deveríamos tê-la, como raiz do novo, idealizado e concretizado no todo da sociedade.

Mas o aspecto determinante de qualquer alteração das políticas é aquele que diz respeito às artes e não está nos apoios, palavra inapropriada, públicos, está no que deva ser um Sector Público assumido como parte da democracia, como especificidade do aprofundamento da democracia — a democracia não é o jogo parlamentar. Pelo voto, aliás, chegam os fascistas ao poder, dominando parlamentos. É aí também, mas não é aí apenas, já que as artes não têm vocação utilitária mas estética e crítica, que as coisas se passam — as artes são um contra-poder necessário que o poder, justamente democrático tem de conceber como parte da sua estruturação.

É necessário ir muito mais longe na forma de fruir as liberdade no interior das sociedades, elas não se resolvem no consumo, no consumo ilude-se o que sejam através de práticas simulacro, através de formas fetichistas massivas ou da expressão concentrada e local desse massivo, da manipulação, do mercado — mercado e democracia são um antagonismo, a regulação é justamente a forma de compatibilizar o incompatível. Essa fruição virá do aprofundamento das práticas interiores — de ler e criar, práticas do corpo/mente — que as enraizem como constante de construção das subjectividades em liberdade e das liberdades como ambiente dessa experimentação de cada um entre os outros, como capacidade crítica gerada pelas vivências e qualidade dessas vivências na base. O que não é o espectáculo permanente da curtição obrigatória consumista mas sim o “debate” permanente dos caminhos e opções que se vão tomando na construção de um mundo alternativo a este — as empresas não são um “sujeito” democrático, pela concorrência não se constrói nada de novo, impõe-se um mundo único, monopolar — há mundos que nem sequer pertencem ao mercado, são parte desta natureza que a todos diz respeito e que coninuamos a “descobrir” pela via do que chamam “progresso” — agora “desenvolvimento, sustentação” — e que tem sido um planeticídio constante.

É uma utopia? É, mas sem referências utópicas positivas e em parte já referidas a realizações havidas, vamos para onde? É um método considerar a utopia. E nada tem a ver com amanhãs que cantam. Esses estão enterrados, deveriam estar e bem digeridos, com inteligência prospectiva. Partamos para outros. Alguém, defende abertamente a exploração de uns pelos outros? A maior parte não, mesmo que agora, é muito recente, as serpentes tenham regressado e falem sem freio próprio, às escâncaras, como as SS faziam na rua  — não fizeram isso agora em Porto Alegre a uma jovem, não lhe cravaram uma suástica a canivete, no corpo? O medo toma conta de tudo e leva o escravo a votar no dono. As formas da cegueira são entretanto múltiplas, donde que o enraizamento de uma outra consciência dos reais seja essencial. Do que precisamos? De avançar mais que Garrett e o seu Teatro Nacional, já tão longe no tempo. De criar em todas as regiões mecanismos de criação que permitam o exercício de uma arte crítica a quem pelas suas profissões optou — é o respirar da democracia que não deve estar refém dos partidos, é mais que eles. E são dezenas as escolas de artes e centenas os formandos saídos das suas fornadas anuais. Condenados a fazer umas animações locais, recreativo-performativas, a sonhar com a TV e a andar a maior parte do tempo à procura de trabalho. O trabalho está por criar porque as estruturas não existem — estas estruturas não são obra de voluntarismo — e as organizações precárias que sobrevivem não o podem interiorizar na complexidade estruturalmente intrínseca à arte e necessária, muito menos realizarem-se materializando nas suas práticas — e muitas são ricas — as suas potencialidades cívicas, críticas e futurantes — através do que é artístico e único, irrepetível que se repete oficinalmente. Pensar é um artesanato neuronal que a ficção cénica liberta, de um lado e outro, é-lhe imanente.

Para uma actividade complexa como o teatro, com uma tradição mais que bimilenar, com uma vastíssimo património textual e arquitectónico, com o extraordinário século XX que realizou, o da encenação, é necessário fazer o que outros fizeram: na Itália chamam-se Stabile, na França, Centros Dramáticos, na Alemanha Teatros Nacionais das Regiões e por aí adiante. Estas entidades são “fábricas” e a sua dimensão é a dimensão das potencialidades democráticas da própria arte. Mesmo com a recessão, nesses países, este tipo de estruturas continua a sua actividade essencial de respiração democrática. Não são obviamente entidades tuteladas à antiga, são entidades autónomas, entes autónomos.

Sugerir correcção
Comentar