Ecce homo!

Muitos guardiães da paternalista moral reinante querem um mundo asséptico, com gente saudável, que não beba, não fume, não coma em excesso. São estes que cada vez mais me enervam.

Falava comigo como se fosse um anormal. Um ser acéfalo e pequenino. Não em tamanho, mas de tacanha pequenez de pensamento. Como se não fosse capaz de articular um pensamento autónomo, uma ideia própria. Tinha de ir com o grande guia espiritual que tudo me ensinava. Melhor, tudo me impunha. Policiava a minha linguagem: “agora fala sempre no feminino e no masculino, não hostilizes nunca minorias, as palavras têm o seu peso.” E eu acreditava, por viver com as palavras, por me deitar com elas e deixar algumas ressoarem em mim em direcção a uma qualquer divindade.

Perguntaram-me certa vez se existia polícia moral em Portugal. Que não, que a Constituição o não permitia. Que o Direito, em especial o Penal, não serve para tutelar uma moral, uma religião, uma ética. Exigimos o mínimo essencial a que possamos conviver. Não temos de nos amar ou odiar; apenas partilhar o mesmo solo. E está bem. Palavra dita não mais é retirada. Mas tenho-me dado conta que, porventura, já ultrapassámos o razoável. O proporcional é a medida da própria vida, tal como o sal na comida ou o exercício físico.

Muitos querem um mundo asséptico, com gente saudável, que não beba, não fume, não coma em excesso, não tenha relações sexuais em demasia – medidor precisa-se –, se não drogue, mantenha uma “atitude positiva em relação à vida”, pratique algum tipo de meditação. “Ficam muito mais baratos ao Estado”, dirão os mais dados ao vil metal. “É o melhor para eles”, dirão os guardiães da paternalista moral reinante. São estes que cada vez mais me enervam. Quem lhes outorgou o direito divino de construir uma mulher ou um homem à semelhança de um certo ideal? Todas as épocas têm o seu e o nosso parece ser uma pessoa – ainda o será? – pão sem sal, magra, atlética, bonita – seja lá o que isso for –, sem doenças, que coma de boca fechada, que frequente salões, que não diga nada fora do sítio, que não use linguagem sexista. Este último atributo tenho-o por evolução civilizacional de aplaudir.

Mas este monstro moral quer mais. Quase que deseja saber com quem dormimos e como o fazemos. Este “o” implica o dormir e o resto que habitualmente se faz no leito. Parece que agora tem mesmo de ser nesse local, sob pena de sermos apelidados de depravados e promíscuos. O normativo é a formação do jurista, mas acima dele está a liberdade de pensamento, de opção, de acção. E essa vai sendo cerceada do modo mais problemático: através de códigos não escritos, de esgares estranhos, de postergação de certas pessoas de determinados círculos. Os inconvenientes. Não são os antigos mendigos ou os tipos que cheiravam mal, mas os que não são pseudo-urbanos e pseudo-intelectuais. Que não sabem citar autores, filósofos, pensadores – pensava eu que o éramos todos, mas laboro em grave equívoco que já me fez dar mais uma volta no cilício –, que não têm na ponta da língua um pintor, escritor ou cineasta favoritos. Aqui entre nós, estes seres superiores para a inteligentsia dos costumes só conhecem os nomes de lombadas de livros, de folhas de sala, de entrevistas de vida a pessoas que se estão a marimbar para estas perguntas, mas, porque leram, viram cinema, ouviram música, sabem o que lhes agrada. A “imprensa cor-de-rosa” desempenha aqui um não despiciendo papel pseudo-cultural, quiçá a merecer honrarias de Belém.

A brigada dos costumes entrincheira-se sobretudo na alta burguesia, a classe que sempre aspirou ao patamar superior de uma sociedade de castas e que despreza os “patas-ao-léu” de Fernão Lopes, de onde provém e cujas origens esconde. Tanto se esforça por escondê-las que ressaltam à vista e ao odor o estrume dos campos ou os calos do trabalho nas fábricas. Chamamos-lhes “novos-ricos”. Designação acertada, mas não apenas para quem do nada fez muito em termos económicos – o self-made man/woman –, mas igualmente para os neo-iluminados: intelectuais de pacotilha que fizeram cursos rápidos quais Tang diluído em água e que ocupam as mais altas patentes na polícia moral que nos tolda as acções e a linguagem. “Nunca me senti toldado. Digo o que quero e penso!”. Ecce homo! Esses são os mais belos especímenes que a prisão moralista dos costumes tem para apresentar. O controlo é tão mais eficaz quanto menos visível.

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