Robustez estética e excelência espiritual

O Coro Gulbenkian — dos poucos agrupamentos corais, entre nós, com condições artísticas para abordar este repertório com reduzido tempo de preparação.

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A contralto Marta Ribeiro, o tenor Bruno Almeida e o maestro dr
Não é muito comum, em Portugal, o acesso à música da tradição cristã ortodoxa, pelo menos em situação de concerto. É certo que as comunidades ortodoxas têm aumentado paulatinamente a sua presença, sobretudo através dos muitos emigrantes ucranianos e romenos; e quem tenha presenciado algum dos respectivos serviços litúrgicos não pode deixar de ficar impressionado com a sua musicalidade, que começa com o celebrante e se estende à participação dos fiéis.
 
Essa musicalidade radica numa longa tradição, sem ficar dela refém. Contrariamente ao catolicismo romano — em que a decadência estética não é somente fruto da diminuição dos recursos económicos disponíveis no Antigo Regime, com consequências imediatas no emprego artístico associado à Igreja, mas tem vindo a ser sucessivamente alimentada, nos últimos 150 anos, pelo clericalismo antiliberal, que opôs a música sacra à criação contemporânea; pelo centralismo revivalista, que cilindrou as práticas locais a favor da importação de modelos romanos e neogregorianos; e pela trivialização litúrgica pós-conciliar —, a Igreja Ortodoxa tem sabido conciliar o passado e o presente, o local e o universal, o envolvimento da comunidade e a relevância artística, erigindo a música litúrgica como sinal de excelência espiritual. 

Precisamente da cumplicidade entre a igreja russa e o compositor Sergei Rachmaninov nasceu, em 1915, uma das suas obras mais significativas, e uma das suas preferidas: as Vésperas, op. 37, para coro misto. Contrariamente ao que o nome parece indicar, a obra contém secções não só da hora de Vésperas, mas também de outros momentos do Ofício Divino (Matinas e Prima), potencialmente cantáveis ao longo de uma Vigília nocturna.
Os materiais melódicos de base e o leque estilístico remetem para uma razoável diversidade de cantos litúrgicos antigos; Rachmaninov acentua essa diversidade submetendo-os a um tratamento polifónico extremamente variado, no qual as partes vocais são multiplicadas e divididas até quase triplicar as quatro vozes da textura de base. Requer-se, assim, para a execução da obra, um coro de razoável dimensão e proficiência técnica.

No concerto que agora nos ocupa, o intérprete foi o Coro Gulbenkian, dirigido por Jorge Matta — dos poucos agrupamentos corais, entre nós, com condições artísticas para abordar este repertório com reduzido tempo de preparação (mencione-se de passagem que, a nível estudantil, foi criado em 2012 o Coro Académico Romanos Melodos para divulgar repertório ortodoxo compatível com uma formação de câmara). 

O concerto inaugurou a 30.ª Temporada Música em S. Roque organizada pela Misericórdia de Lisboa. O programa de sala incluía, como é de esperar (mas há quem teime em ignorar), os textos usados na obra e as respectivas traduções, só que o organizador assumiu que os caracteres cirílicos são legíveis pelo público português, o que praticamente impossibilitou o confronto, a par e passo, entre o que se ouvia e o seu significado; felizmente, os cantores tinham à sua frente, na partitura, a transliteração em alfabeto latino, e não se atrapalharam.

A prestação do Coro Gulbenkian foi segura, com Jorge Matta a imprimir-lhe uma energia e um cuidado bem audíveis na firmeza dos ataques, na gradação das dinâmicas e na redondez do fraseado. Pena é que o coro não disponha dos baixos profundos que teriam permitido entoar com a necessária nitidez os sons ultragraves escritos pelo compositor. As passagens a solo foram confiadas à contralto Marta Ribeiro, cujo timbre cheio e emissão escorreita impressionaram muito favoravelmente, e ao tenor Bruno Almeida, de qualidades evidentes na projecção e na riqueza da voz, mas vibrato descontrolado — transposição indesejada do universo operático para o contexto coral aqui em apreço.
 
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