A bomba atómica do ridículo

O lado sombrio de um país videirinho onde reina a lei do “salve-se quem puder” é também aquele que encontramos na forma como as hierarquias militares (e, já agora, políticas) tentaram encobrir o caso de Tancos.

O ritual cumpriu-se e o gesto de Azeredo Lopes ao demitir-se de ministro da Defesa foi saudado pelo primeiro-ministro e pelo líder da oposição, Rui Rio, como revelador de “sentido de Estado”. Mas não deixou de ser sintomática a declaração de Augusto Santos Silva, o ministro dos Estrangeiros e número dois do Governo, que fez questão de se destacar dos seus pares para saudar esse gesto que “enobrece” o colega demissionário e, conforme também confessou, seu amigo. É que Azeredo é uma espécie de imitação e versão menor de Santos Silva, além de serem ambos universitários e de extracção portuense — tal como Rio —, pela disponibilidade demonstrada para ocupar cargos políticos da mais variada natureza desde que bafejados pelo perfume do poder.

Santos Silva foi, sucessivamente, ministro da Educação, da Cultura, da Defesa (tal como o amigo demissionário) e, por fim, dos Estrangeiros. Já Azeredo transitou de tutor político da Comunicação Social para tutor político das Forças Armadas, com passagem pela chefia de gabinete do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, sempre com um sentido de adaptação e metamorfose típico de um apparatchik — cujo modelo é, precisamente, Santos Silva —, pronto a abraçar qualquer função governativa. Só que esta elasticidade, aparentemente tão prezada por António Costa, se presta também a escorregadelas mais ou menos espectaculares em terrenos movediços como é o das Forças Armadas. E Azeredo não resistiu ao impacto dessa bomba atómica do ridículo que foi a novela de Tancos — que o atingiu em cheio como ministro, assim como às chefias militares e aos diversos actores dessa novela, desde o(s) autor(es) do crime aos seus encobridores e cúmplices, chegando alguns deles a reivindicar uma actuação concertada “em nome do interesse nacional”.

Ainda estão por esclarecer muitos pormenores da história, mas o que já conhecemos é mais do que suficiente para ficarmos estupefactos — apesar de eventualmente estarmos preparados para tudo — com a mistura explosiva de irresponsabilidade, de tacanhez mental e ética ou ainda de impensável infantilismo que este caso pôs a descoberto. E pensar que tudo isto foi praticado, encenado e escondido à sombra de uma instituição que é suposto estar ao serviço da defesa e segurança do país, mas parece funcionar como uma espécie de maçonaria, é qualquer coisa de arrepiante. A não ser que decidamos levar tudo para o território da paródia e do grotesco — como, aliás, Azeredo Lopes, numa já célebre entrevista, parecia convidar-nos (ao admitir, freudianamente, que não sabia sequer se tinha havido roubo de armas nos paióis de Tancos).

Mas se a questão é já muito grave no que refere ao (des)funcionamento e à crise de autoridade das Forças Armadas ou à paranóia de autodefesa corporativa que este caso revela (através da guerra e os jogos de ocultação opondo a PJM à PJ), a rápida sequência no tempo entre o trágico folhetim dos incêndios de 2017 e os episódios de Tancos é sintomática de um padrão de comportamento político que vulnerabiliza seriamente a cadeia de responsabilidades do Governo e a imagem de habilidade, competência e sentido de Estado tão insistentemente cultivada por António Costa.

Os incêndios puseram a nu uma aflitiva incapacidade de previsão e uma arrogante displicência nesse padrão de comportamento que culminou na avidez sórdida com que um punhado de oportunistas tentaram capitalizar para abusivo benefício próprio as obras de reconstrução nas zonas afectadas pelos fogos. Ora, esse lado sombrio de um país videirinho onde reina a lei do “salve-se quem puder” é também aquele que encontramos na forma como as hierarquias militares (e, já agora, políticas) tentaram encobrir o caso mais gritante da sua inoperacionalidade.

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