A esquerda perde-se no seu labirinto. E o autoritarismo avança

E a esquerda mais progressista limita-se a reagir, tentando preservar o mínimo (estado social, emprego, educação, saúde), e abraçando questões identitárias, mas não criando uma base comum de luta aglutinadora.

Ignorantes, incultos, fascistas. Estas foram algumas das designações que se leram por aí a mimosear os muitos brasileiros que votaram em Bolsonaro. Nos últimos anos com as lideranças autoritárias, musculadas e populistas a afirmarem-se em todo o mundo, de Trump a Orbán, tem sido sempre assim. Identificamos os sintomas. Alerta-se para os perigos. E quando a realidade se abate sobre nós culpabiliza-se quem aclamou estas figuras.

A reactividade não serve. É preciso mais. A começar pela autocrítica à esquerda. Assumir que, em parte, o que se vislumbra hoje é também responsabilidade sua. A direita moderada tem respondido ao estado de emergência permanente em que vivemos na última década continuando a acreditar no crescimento económico infindável, na especulação e na auto-regulação dos mercados — ou seja, mais do mesmo do que nos trouxe até aqui. Mas a esquerda também não tem sabido encontrar ideias alternativas de futuro, suficientemente mobilizadoras e universalistas.

E eis que esse vazio tem vindo a ser preenchido por despotismos, nacionalismos ou euroceptismo. Ninguém hoje pensará em revoluções no sentido clássico, não se trata disso, mas era preciso uma via alternativa, que não fosse o capitalismo liberal que cada vez mais, apesar das metamorfoses, vai dando mostras de desagregação (não sou eu que o digo, são perigosos revolucionários como Bill Gates, Elon Musk ou Mark Zuckerberg, apelidados agora de forma chique de “pós-capitalistas”). E muito menos esse caldeirão de capitalismo global e autoritarismo local, onde hoje parece caber tudo, dos EUA à Rússia, da China à Turquia, da Hungria a países da Ásia, não olhando a credos, culturas ou ideologias, cerceando democracias, liberdades, direitos humanos e tentações de igualdade.

Perante isto, a esquerda progressista não escapa à tentação de classificar como fascista qualquer indução autoritária, simplificando os termos, banalizando-os, sem que exista uma análise sobre os motivos que levam uma parte considerável dos cidadãos a desconfiar dos processos políticos dominantes — abraçando sim, em alguns casos, novas formas de fascismo.

Poder-se-ia pensar que perante tantos conflitos (crise ambiental, económica, migratória, precarização, exclusão, corrupção, xenofobia) esta seria a hora de serem forjadas novas políticas coerentes, mas nada. Não só a esquerda não o soube fazer, como parece ter perdido o contacto com fatias da população, zangadas, descrentes, precarizadas. Já não são apenas os velhos pobres. São também novos pobres, actividades outrora estabelecidas, agora vítimas da ineficaz redistribuição da riqueza, e outras porções populacionais não carenciadas, mas ressentidas e não inscritas.

Questões complexas. E ninguém parece interessado em enfrentá-las. A direita musculada limita-se a propor o regresso a um passado mitificado. E a esquerda mais progressista limita-se a reagir, tentando preservar o mínimo (Estado social, emprego, educação, saúde) e abraçando questões identitárias, mas não criando uma base comum de luta aglutinadora.

Não se trata de minorar o que tem vindo a ser conseguido em termos de modelos relacionais, por exemplo, entre mulheres e homens, e outras lutas identitárias, mas de perceber que, apesar da justeza destas, e de se insistir na sua vertente interseccional ou na reactividade das hegemonias, que a igualdade de oportunidades passa também por questionar os modelos capitalistas de produção mais perversos. Era preciso que a fixação nas identidades não nos desligasse das questões alheias aos diversos grupos de referência e que essa miríade de lutas convergisse para algo maior, que revelasse as questões comuns que atravessam o nosso tempo. E não se sente que esse denominador tenha sido encontrado.

Fala-se com um adepto de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro e percebe-se que não se revêem necessariamente nos insultos sexuais ou raciais, mas gostam de sentir que os mesmos desafiam elites políticas ou culturais. O que é também demonstrativo de como a esquerda tem tido mais dificuldades de adaptação ao novo ecossistema comunicacional. Claro que é mais fácil vivenciá-lo de forma negativa, impondo o medo, ou transformando questões políticas em morais. Mas nitidamente a esquerda ainda não foi capaz de se adaptar a um mundo digital onde a interpretação da vida social já não é realizada apenas por uma elite para uma massa de outros.

Essa relação hierárquica foi-se. Trump percebe-o e Bolsonaro beneficiou do mesmo. No seu caso, nem a linguagem, tal como a conhecemos, existe propriamente. O que se vislumbra são apenas gestos de força. Já não se trata de falar verdade. Apenas de sentir que se pertence ao grupo que grita mais alto. Muitos desses eleitores não acreditam propriamente no que lhes é dito. Só querem chegar às urnas e mostrar que são anti-sistema. Claro que não ajuda a explicar tudo. Longe disso. Mas não é por acaso que figuras como Bolsonaro ou Trump, mesmo nas falhas, ou precisamente nas insuficiências, são desculpadas. Quem o faz não os desculpa apenas a eles, mas também a si próprio. É essa a lógica da representatividade.

Muita gente preferia não ter de lidar com essa realidade. Mas ela está aí. E a única forma de bater Trump ou Bolsonaro é olhar para os seus eleitores, tentar compreendê-los e perceber que nem todos são aquilo que achamos que são. Alguns fazem parte do grupo que apenas pensa nos seus privilégios. Mas outros estão apenas tão perdidos como nós. Sentem-se despeitados ou falhados. Mas a esquerda também tem falhado na ausência de alternativas. Injuriá-los não leva a lado nenhum. São eles que dão destaque a personagens terríficas como Trump ou Bolsonaro quando vão às urnas. Mas são também eles que lhes podem tirar o tapete.

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