Violação – para acabar com os truques

A lei mudou, mas a vida das mulheres ainda não. Ser violador compensa mais do que ser ladrão.

Há quatro anos, o Bloco de Esquerda avançou na Assembleia da República com o pacote legislativo que pôs na ordem do dia os compromissos da Convenção de Istambul. Então, defendemos que o crime de violação deveria ser público, até para abrir as portas das casas e da intimidade onde a violência sexual é silenciada. Então, defendemos que deveria radicar na não expressão de consentimento das vítimas, porque é no “não consentimento” que radica a violência do ato e a natureza do crime, para tirar o ónus que a lei e a sociedade impõem a mulheres e crianças, as principais vítimas deste crime.

Então, quisemos combater a noção de o violador ser um estranho, assim reconhecido pelo recurso da violência e da ameaça, acrescendo o “ónus de resistência da vítima, como se a vítima, se não defender o seu corpo e a sua autonomia com energia, agredindo o violador, merecesse ser violada ou a sua liberdade sexual deixasse de ser tutelada pelo direito penal”, como Clara Sottomayor denunciou [1]. Fizemo-lo, porque as estatísticas conhecidas denunciam outra realidade: a maioria dos agressores tem relações de proximidade com as vítimas.

Quisemos eliminar padrões, que perduram: quando não domina o padrão do processo cumulativo de violência (o agressor que só o é quando exerce violência, a vítima que só o é quando dá provas de lhe resistir), domina o da corresponsabilidade: “Elas puseram-se a jeito.” Ambos branqueiam a evidência: um ato sexual não consentido é, de per se, um ato de violência. É, pois, no “não consentimento” que se configura o atentado à autodeterminação e à liberdade sexual, que radica a violência do ato e a natureza do crime.

Com a conclusão do processo legislativo em 2015, que acolheu na Assembleia da República um consenso alargado, a lei melhorou: expurgou-se a aberração de um crime que, praticado em relações de dependência/autoridade, tinha menor moldura penal (anterior n.º 2 do artigo 164.º), abriu-se a tipificação (conforme o n.º 2 do atual artigo 164.º), alterou-se a moldura penal.

A lei mudou, mas a vida das mulheres ainda não. Segundo as estatísticas do Ministério da Justiça, entre 2010 e 2016, 30% dos condenados por violação ficaram fora da prisão, sendo o crime de abuso sexual o mais desvalorizado (51% com pena suspensa). Ser violador compensa mais do que ser ladrão. O Relatório Anual de Segurança Interna (2018) dá nota do aumento de participações (mais 21,8%) e de detidos, todos homens, quando as vítimas são esmagadoramente mulheres (mais de 90%, nesta data). Não se duvide que, apesar da neutralidade prevista no tipo legal de violação quanto ao género da vítima, este crime carrega a marca da violência de género.

A lei mudou, mas não chega. Se o juiz e a juíza da Relação do Porto podiam ter avaliado a violação de Gaia como tal? Podiam, se quisessem, e se a lei não lhes oferecesse o rodeio do abuso sexual, um crime socialmente menos pesado do que a violação, e para o qual a pena suspensa é o recurso dominante.

O movimento social tem insistido, e bem, no peso da cultura machista, da sociedade e dos juízes e juízas. Mas se a lei lhes continuar a oferecer malabarismos de desculpabilização dos agressores, a lei tem de ser mudada. Não bastará, já o sabemos. A alteração do quadro de perícias, a criação de centros de atendimento, que acompanhem e preservem a segurança das vítimas, o trabalho profundo que deve ser feito a todos os níveis, a começar pela escola, são prioridades para a desocultação, a prevenção e o combate à violência sexual.

[1] “O conceito legal de violação: um contributo para a doutrina penalista”, Revista do Ministério Público, 128, dezembro de 2011, pp. 274-275

Cecília Honório, ex-deputada do BE, subscritora do pacote legislativo relativo à Convenção de Istambul
Sandra Cunha, deputada do BE, membro da 1.ª Comissão, responsável pela área da igualdade

As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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