Cuidados paliativos: o futuro não bate à porta

Face a todos os desafios, 2018 marca a chegada do mais expressivo investimento filantrópico em cuidados paliativos até à data no país.

A Dona Maria vive com demência, agora em fase avançada, há 15 anos. É um dos casos clínicos complexos que será discutido este mês na abertura do IX Congresso Nacional de Cuidados Paliativos e 8.º Congresso de Cuidados Paliativos do IPO Porto, dedicado a “Preparar o Futuro, Novas Soluções”. A Dona Maria não é um caso típico de um doente seguido por uma equipa de cuidados paliativos. A grande maioria tem cancro. Mas a Dona Maria tem necessidades paliativas tão ou mais complexas do que uma pessoa com cancro avançado. Tem direito, segundo a Lei n.º 31/2018, a receber cuidados paliativos através do Serviço Nacional de Saúde. O número de pessoas que, como a Dona Maria, vivem com demência é previsto triplicar até 2050. 

Seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde, Portugal tem há dois anos um Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, que chega ao fim daqui a três meses: qual o seu futuro? Atingiu uma das metas, a da implementação de equipas hospitalares de cuidados paliativos em todos os hospitais do país. Noutra, porém, central para Portugal, fica bastante aquém. Continuamos com menos de 30 equipas domiciliárias de cuidados paliativos, nenhuma delas pediátrica, para apoiar doentes e famílias em casa, que é onde a maioria prefere estar. Sem proteger verba orçamental adequada para crescer, será difícil mudar esta realidade. O Orçamento do Estado para 2019 é uma oportunidade. Quanto do acréscimo de 300 milhões de euros previsto para a Saúde, será alocado aos cuidados paliativos?

As equipas de cuidados paliativos são compostas, na sua base, por quatro grupos profissionais: médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais; e a maioria cumpre este requisito. Porém, o apoio prestado, sobretudo por psicólogos e assistentes sociais, é insuficiente face às necessidades: nas equipas onde existem, estes profissionais contabilizam apenas 15 a 18 horas de apoio por semana, segundo dados do Relatório Primavera 2017 do Observatório dos Sistemas de Saúde. Note-se que em Portugal morrem por ano cerca de 75.000 pessoas por doenças que poderiam beneficiar de cuidados paliativos, e que por doente há normalmente dois a cinco familiares envolvidos, com direito a receber também eles apoio, não só no processo de doença mas também durante o luto. É igualmente preocupante a escassez de médicos com reconhecida competência em medicina paliativa (menos de 60), o que entrava a criação de novas equipas.

Os cuidados paliativos são mundialmente uma área negligenciada em investigação. No Reino Unido, atrai apenas 0,5% do financiamento para investigação em oncologia. Esta percentagem é ainda menor em Portugal. No último concurso de projetos aprovados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia apenas um em 1618 projetos é sobre cuidados paliativos. Existe uma rede de investigadores, o Observatório Português de Cuidados Paliativos, mas não há ainda centros internacionalmente competitivos. Sem ciência não há evidência, e sem evidência não há práticas informadas, melhorias nos cuidados e garantias de que as necessidades são supridas.

Face a estes desafios, 2018 marca a chegada do mais expressivo investimento filantrópico em cuidados paliativos até à data no país. A Fundação “La Caixa”, no âmbito da sua intervenção social em Portugal, criou o Programa Humaniza, que se desenrolará durante os próximos seis anos (2018-2023), em colaboração com o Ministério da Saúde e Secretarias Regionais da Saúde dos Açores e da Madeira, com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas com doenças avançadas e suas famílias em Portugal, atendendo sobretudo aos aspetos emocionais, sociais e espirituais. O Programa arrancou com dez novas equipas de apoio psicossocial, que estão a ser constituídas e treinadas para passar ao terreno este ano. Nas próximas semanas abrirá um concurso de apoio a movimentos associativos para implementação de projetos inovadores de sensibilização pública e promoção de apoio no âmbito psicossocial e espiritual. O Programa apoiará também a qualificação de especialistas em cuidados paliativos, começando com dez bolsas para médicos, o que aumentará em 20% o número de médicos com reconhecida competência em medicina paliativa no país. Apoiará ainda a constituição de novas e modelares equipas domiciliárias de cuidados paliativos, começando com cinco, o que aumentará também em 20% o número destas equipas no país.

O futuro traz desafios e oportunidades para cuidarmos melhor de doentes como a Dona Maria. O futuro não bate à porta: já entrou.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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