De Tancos e encenar

O que faz a encenação com estes acontecimentos: põe a nu essa merda toda, revela as tramas, busca as origens, joga na razão sensível, desoculta.

Mais uma vez a língua de pau do real, quer dizer do virtual, anda aí a confundir encenação com mentira urdida, modo de enganar o pagode. Pôr em cena é o contrário, é dar pistas para desocultar. Já os dramaturgos, antigos e recentes, pertencem a um ofício que é o de falar do interdito, dar voz a quem não pode ou nem tem, falar do que não se fala em outros meios. Nem a política é capaz de ser tão abrangente e é muito menos capaz de ser pormenorizadamente concreta: onde não penetra o teatro? E aí entra a encenação. Enfrenta o que não é só notícia mas processo, denuncia a barbárie instalada na “normalidade” (este Bolso-fascismo em ascensão, o outro foi Arturo Ui), fala das formas da violência estruturante de desigualdades na base do edifício-realidade que “consumimos”, aceitável — a encenação é labor artístico, as suas decisões de escrita exercitam análise dos textos quanto do real, dramaturgia, sociologia, passando pelas psicologias. Encenar é o contrário de ocultar. E dar pistas é porque encenar, para quem é encenador, é uma forma — sempre pedagógica porque artística (Gramsci) — de fazer aceder aos ocultos, de revelar, expor, mostrar mostrando que se mostra, demonstrar, pois tem em conta a inteligência do destinatário. Não é um exibicionismo, expor-se a si mesmo. Não é um narcisismo bacoco, obrigatório em nome de uma intimidade exposta rendível, “venal”, consciente da onda voyeurística que move as “audiências”, coladas à magia peganhenta e estupidificante dos ecrãs ao serviço das engrenagens poderosas da imagem e da linguagem publicitária dominante, subliminar ou espectacular. É olhar um espaço vazio e inscrever a matéria significante, corpos em relação entre si numa arquitectura definida, entre objectos, e libertar quem vê libertando o espaço do “cheio”, da inscrição do sentido num “pleno imperial da imagem”, de modo a que justamente não ludibrie no que se dá a ler. É um modo de fazer pensadamente e de fazer emergir pensamento, através de uma linguagem que radica nas potencialidades significantes do corpo — fala e gesto — que atrai pela beleza e que buscando a verdade não cede a tabus nem a clichês, é uma linguagem que não é politicamente correcta. Não, não é chocar por chocar, é fazer inteligir até ao osso, converter as emoções imediatas em prazer longo do entendimento no tempo que cada obra necessita para fazer maturar o que diz e vai dizendo, volta a dizer. E se é obra de arte continuará a dizê-lo. O descartável é o que é, cede ao instante, pode ter a beleza do relâmpago e saciar a fome a um stressado vulgar enquanto não se lhe sobrepuser outro descartável — nada mais enervante que aquilo que a velocidade instala como regra no ritmo do fluxo do dinheiro, não falamos publicitês, a rapidez das transacções financeiras não tem de fazer as nossas cabeças, a nossa velocidade neuronal será outra, a reflexão não é roleta, menos ainda russa. Ocultar é de facto o contrário de encenar, é ter em conta a estupidez dos que são considerados na urdidura do engano como enganáveis, estupidamente normais, povo de fãs e cliques. Quem congemina o engano, conta com o espectáculo para tornar invizível o que faz pela via do excesso do visível, logo que a coisa é pública.

Não há nenhum teatro na história de Tancos, há manobras militares clandestinas para fins de negócio, as do assalto e as do aparecimento do material militar, manobra táctica no sentido mais limitado — o de um recuo mal enjorcado já que o negócio, aparentemente, abortou, se é que não estamos perante uma manobra de diversão e acontecem movimentos noutras paragens (quando toda a gente olha para o mesmo lado….) — não fora assim a coisa não se desmascararia por si mesma. Há muito negócio escondido em rotinas que na sua evidência são invizíveis e que prolifera “naturalmente”, quer dizer, negócios instalados nas dobras, rotinas. A corrupção enraizou-se nas instituições, o Estado é corrupto, está infiltrado de corruptos, das polícias aos gabinetes, aos partidos, entidades para-estatais, nas câmaras empregam-se os próximos, tenho visto isso por todo o lado e já corri muito país. Há vigarice do topo dos ministérios aos bancos, dos bancos aos negócios obscuros, armas, narcotráfico, etc. Esses mundos são este mundo, não a sua margem, é na margem que as fortunas se fazem, na fuga ao fisco, nas trumpices, nas salvinices, nas bolsanarices, nas lepenices, mas também nestas democracias que as terceiras vias foram enterrando, já que foram poder real.

O que faz a encenação com estes acontecimentos: põe a nu essa merda toda, revela as tramas, busca as origens, joga na razão sensível, desoculta.

Encenar é uma arma da democracia, do sensível, do pensamento, é uma actividade de criação, um dos mais complexos artesanatos colectivos que a existência humana tenha inventado — e dura há mais de dois mil e quinhentos anos, digo o teatro, não a encenação, uma das suas invenções mais recentes, do teatro, pois — que, como sabemos, reúne o mais sofisticado contemporâneo tecnológico ao mais arcaico oficinal numa lógica real, presencial, despida dos efeitos do espectacular integrado, mediatizado.

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