Para lá de Natal, ainda há praias desertas e aldeias intemporais

Não é preciso subirmos muito pela costa para que os prédios dêem lugar a planícies áridas pontuadas de eólicas, aldeias por onde o tempo não passa e praias, longas praias, sem absolutamente ninguém.

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Terão sido aqueles rochedos negros a mudar o nome à terra. Anteriormente apelidada de Bom Jesus dos Navegantes, nome de santo padroeiro e de igreja matriz, a vila passou a chamar-se Touros, a data precisa perdida há muito nos registos do tempo. Os homens do mar viam de lá o focinho do animal a desenhar-se nas rochas atabalhoadamente caídas da falésia. E, vai daí, “botaram o nome Touros”. Tão simples assim, conta-nos João Maria de Arcanjo, sentado sobre uma jangada de madeira, a apanhar banhos de sol. Pergunte-se a qualquer boca e a história vai sair ligeiramente diferente. Talvez se apontem outras pedras, até outra praia. Talvez se adense a novela com uma tempestade em alto mar. Talvez se conte tudo diferente, porque há outras versões que não metem touros desenhados nas rochas. Mas esta, com pequenas variações, é a de que todos nos falam.

É domingo de manhã e a vila parece encaminhar a vida em sentidos opostos. De um lado, o silêncio solene a ouvir a missa, onde quase não há lugares vazios. Do outro, a praia ampla a borbulhar de movimento. Chegam os pescadores nas jangadas com caixas de gelo “para abastecer e sair amanhã”, às 5h, mal o sol levanta, na apanha da lagosta e peixe variado. “Camarão é de rede, ali depois da baía”, apontam antes de partirem. São os miúdos que jogam diferentes partidas de futebol pelo areal. Os dois dálmatas que se passeiam de coleira cor-de-rosa. Os buggies que passam, as motas que chegam. As selfies à beira-mar. Mais o carro do espetinho e o dos picolés, omnipresentes, para lá e para cá. E os mergulhos, porque o vento não pára, mas a água é morna de morna. Não é uma praia apinhada, antes familiar, cheia de garotada e gente local.

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Foram os rochedos negros, ao fundo, que terão dado o nome Touros à povoação

Aos primeiros dias de Setembro, ainda estamos longe da época alta por estas paragens. E é certo que a chuva há-de alegrar algumas noites e o vento ainda se põe ríspido, a rasgar a pele de areia, à excepção de uma ou outra praia mais abrigada, como esta. Mas não mentimos se dissermos que foi o areal com mais gente onde estivemos, desde que aterrámos de madrugada em Natal e até lá voltarmos, no último dia. Subindo a costa de Rio Grande do Norte, não tarda os prédios da capital desaparecem para dar lugar a longas planícies, campos de coqueiros, dezenas de hélices de parques eólicos, vilas adormecidas e praias infinitas quase sem ninguém.

Uma praia que é uma estrada

São cinco horas da manhã quando o despertador toca, já os contornos do quarto se adivinham através das cortinas. Na noite anterior teimámos que haveríamos de ver o sol nascer na água pelo menos uma vez durante a nossa estadia e, por isso, aqui estamos, 15 minutos volvidos, sentados frente ao Atlântico. Uma pincelada de nuvens opacas junto ao horizonte atrasa os dourados mais uns minutos mas eles hão-de suceder-se em fotografias e vídeos. Nossas e do único casal que assiste ao bailado do novo dia ao nosso lado, hóspedes do mesmo resort, o único por estas bandas.

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Saindo de Natal, foi a praia onde encontrámos mais pessoas, a maioria locais

Com 113 mil metros quadrados, 514 quartos e meio quilómetro de frente de mar, o Vila Galé Touros é o maior empreendimento turístico erguido de raiz pelo grupo português e o maior resort de todo o estado brasileiro. O oitavo Vila Galé no país há-de ser inaugurado com toda a pompa durante a nossa estadia. E teremos sempre a sensação que, à excepção das gentes locais, é aqui que estão hospedados os poucos turistas com quem nos cruzamos neste fora de época.

João Maria de Arcanjo está esperançoso. Touros é terra pobre. Vive-se da pesca, do que se planta no quintal, do gado magro que sobe as dunas à procura de pasto, das cabras que se deixam ficar à beira da estrada, das galinhas que correm soltas enquanto os proprietários matam o fim de tarde na esplanada gradeada à porta de casa. Vive-se da plantação de cocos, de banana, de abacaxi, de caju. “A educação é péssima e hospital não tem.” Numa das fachadas da vila, anuncia-se Roberto Ribeiro, advogado no primeiro andar, dentista no rés-do-chão.

A companheira está desempregada e João Maria, 57 anos, tem de descer até Natal para trabalhar nos barcos de pesca. Sempre é “melhor para ganhar um trocado” do que aqui: as embarcações são maiores e o salário também. Mas talvez a filha conheça agora um destino diferente. “Foi fazer um trabalho extra no Vila Galé.” Aos 30 anos, nunca teve um emprego fixo e este, para já, só se mantém enquanto a pompa dura e todos os braços são necessários. Mas, quem sabe, “podem gostar do trabalho dela e ficar”, diz, entre a esperança e o cepticismo de quem já viu muita promessa de progresso sem que abrandem os números do desemprego. “Quero que dê ‘chance’, não só a ela, mas a todas as que estão lá.”

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A pesca mantém-se uma das principais fontes de rendimento em Touros

Do resort à vila de Touros são cerca de cinco quilómetros. Entre um e outro fica ainda Carnaubinha, povoação que dá nome à praia em frente ao Vila Galé. Augusto é de lá. Vem a trote numa égua novinha que ainda não tem nome, mas já está grávida de um mês, conta. “Vim treiná-la, porque vamos ter um show este fim-de-semana.” Na aldeia, organizam passeios a cavalo pela praia para quem quiser, garante. “É só pedir que a gente vem e faz.” Têm “muitos [cavalos] lá para passeios.” Esta é que ainda é demasiado assustadiça. “É muito meiguinha, qualquer um monta nela, até criança sem sela. Mas ainda se assusta com carro e com mota.” E são muitos os buggies, motos 4 e duas rodas que passam a alta velocidade pela areia a qualquer hora do dia: é caminho mais rápido entre aldeias e barcos que o outro, de alcatrão, buracos e terra batida.

Um espectáculo em Tourinhos

O município de Touros, contam-nos enquanto atravessamos a vila, fica na “esquina do Brasil”. Bem onde “o vento faz curva”. Terá sido aqui que “nasceu o Brasil”, lê-se em rotundas e fachadas, contrariando a tese oficial. Segundo alguns teóricos e historiadores, terão sido estes os primeiros areais pisados pelos navegadores portugueses, que aqui deixaram um marco colonial, o mais antigo encontrado no Brasil, datado de 1501. Há uma réplica no centro da vila, mas o original encontra-se exposto no Forte dos Reis Magos, em Natal.

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Há quem defenda que foi aqui que os navegadores portugueses desembarcaram pela primeira vez

Qual das versões é a correcta, fique o debate. Certo é que, até 2017, o farol que agora temos à nossa frente era o maior da América Latina, suplantado por um novo edifício erguido em Fortaleza. Aos domingos, é possível visitar o farol de Touros (também apelidado de Calcanhar por se situar no canto da bota que o mapa do Brasil desenha) e subir lá acima para vistas panorâmicas, ligeiramente abaixo dos seus 62 metros de altura. É também aqui que fica o “marco zero da BR-101”, lê-se numa placa junto à entrada, ainda que o quilómetro zero da estrada que desce o país junto à costa, quase 5000km desde Rio Grande do Norte a Rio Grande do Sul, só comece a contar-se uns bons metros mais à frente, quando a terra vermelha cede ao alcatrão e se avista o monumento criado por Oscar Niemeyer para assinalar o ponto de partida.

Haveremos de voltar a percorrê-la em direcção a Natal, mas por agora seguimos para Norte, rumo a São Miguel do Gostoso. As praias vão-se sucedendo sem que demos por umas terminarem e outras começarem. Os areais parecem infinitos, separa-os a população, orientando-se pelas povoações mais próximas ou por pequenos apontamentos na geografia. Carnaubinha, Touros, Calcanhar, Cajueiro, Ponta do Santo Cristo, Praia de Maceió, Xêpa, Tourinhos, mais outras tantas, praticamente vazias à excepção de alguns miúdos a jogar à bola, pescadores e praticantes de kite e windsurf. São Miguel do Gostoso é uma vila “mais desenvolvida”, conta o guia. Muita gente de Touros vem para cá trabalhar. Tem cerca de uma centena de pequenas pousadas e uns 40 restaurantes, a maioria na rua principal, onde as esplanadas se sucedem com raros intervalos, todas vazias.

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No domingo de manhã, a população de Touros dividia-se entre a missa e a praia
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A BR-101 começa em Touros e atravessa todo o país até Rio Grande do Sul

Breve paragem e continuamos, apressados, para a praia de Tourinhos, oito quilómetros mais a norte, onde vamos de propósito para assistir ao pôr do sol. A praia forma uma baía em meia-lua perfeita e termina, adivinhe-se, numa língua de falésias negras — voltou o povo a ver touros na muralha de rochedos, agora mais pequenos. Diz Naldo que “todo o mundo que vem a São Miguel visita esta praia”. E muitos acabam por ficar ali pela esplanada. Luiz pescador, o letreiro não engana, tem aqui a barraca há “uns nove anos”. Muitas vezes, é ele mesmo que vai ao mar de manhã cedo e depois grelha o que vem na rede e na ementa. Há quatro anos que Naldo e a mulher decidiram partilhar com o senhor Luiz a clientela. Fica ali ao lado o carro ambulante do “espetinho”, embora sejam os pastéis a fazer maior sucesso. “Ela faz os recheios de manhã e depois fritamos aqui na hora.” Não chegamos a experimentar, mas devem ser bons: um casal acabou de prová-los e já pediu uma segunda dose.

Naldo parece ter mais do que 31 anos, de rosto bronzeado e voz muito calma e suave. Tinha dez quando foi ter com os pais a Natal. “Aqui não tinha muita oportunidade, era só agricultura e pescaria.” Aos 12 começou a trabalhar, primeiro na fruta, depois numa tabacaria e a seguir “de comercial”. Mas São Miguel do Gostoso estava “a desenvolver”. E ele a ficar “farto de cidades grandes”. “Aí pensei em voltar: tenho de conseguir virar-me na minha cidade”, recorda Naldo, enquanto o sol vai imprimindo laranjas e rosas quentes onde quer que toque. O salário não é muito, mas “dá para viver”. E, bem pesada a balança, “o sossego daqui é muito bom”. É quanto baste para não pensar em voltar.

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O pôr-do-sol na praia de Tourinhos é um momento imperdível

Olhamos de novo o horizonte e já no círculo lhe falta um pedaço, desliza inclemente, sem esperar por ninguém, atrás de um enxame de eólicas. O silêncio na praia é quase absoluto. Até que ao último suspiro do astro o areal rompe num aplauso. É um espectáculo a que se assiste no anfiteatro desenhado pelo Atlântico. Não tarda, a luz tépida põe-se num breu, ainda não são 18h. E no areal, sem electricidade, tudo cessa.

É uma aventura chegar a este recife

“Vai ter banho gratuito no percurso”, bem tinha avisado Alécia. Telemóveis bem fechados nas capas protectoras de plástico transparente. Deixe-se em terra a roupa e a toalha de praia, só fato de banho no corpo. A praia de Perobas fica a cerca de quatro quilómetros de distância do Vila Galé (10km de Touros e 75km de Natal). Mais do que um areal para estender a toalha, é poiso tradicional de pescarias e de passeios turísticos aos recifes, que nesta região são apelidados de parrachos.

Os mais conhecidos ficam em Maracajaú (a meio caminho entre Touros e Natal), mas é em Perobas que vamos fazer snorkeling entre dezenas de peixes minúsculos e rochas rendilhadas. A área, dizem-nos, é mais pequena e menos impressionante, mas também menos apinhada de turistas. A partir da areia nada se vê da zona de mergulho além do pequeno farol, lá muito ao fundo. São precisos 20 minutos de lancha a cavalgar as ondas para que lá se chegue e as águas voltem a ficar mansas, quebradas pelos tufos de rochedos negros que ali formam piscinas naturais azuis-turquesa.

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Nos parrachos de Perobas é possível nadar entre recifes e dezenas de peixes

Duas lanchas de turistas não tardam a ir embora e por largos momentos ficamos sós. Nós, os parrachos, os peixes que um dos guias vai atraindo às dezenas com ração escondida entre os dedos. E a maré, que já está mais alta do que o ideal e vai devolvendo a ondulação à sopa, enturvando a visibilidade debaixo de água e tornando cada vez mais difícil a operação de nadar, respirar e atentar na fauna submersa. Cerca de uma hora depois é tempo de regressar. E, confessamos, nem o aviso de Alécia nos preparou para isto. Para cá, o ricochete das ondas no casco criava um chuveiro divertido, mais dado a piadas entre o grupo do que outra coisa. Desvalorizámos o aviso, demos graças à teimosia que nos fez trazer a toalha de praia para nos enrolarmos depois do mergulho.

Está claro que a soberba se paga cara. A maré vai alta. Altas vão as ondas. E nós num sobe-e-desce pelas paredes de água. Avalanches líquidas que nos caem em cima, implacáveis, intermináveis. Sentimo-nos num bacalhoeiro em alto mar em dia de tempestade — só que o céu está límpido e a costa cada vez mais próxima. Já desistimos de tentar salvar da água qualquer tecido que seja, protegemo-nos e rimo-nos a bandeiras despregadas. Foi uma tareia de meter dó. Mas já estamos de pés na areia e, num dos pequenos restaurantes à beira-mar, Valéria surge com uma geleira de doces. Parece que estava à nossa espera. Depois de alguns anos a viver em Itália e Espanha, Valéria voltou há oito anos para o Brasil e ganha o sustento da família a vender doces caseiros pelas praias: aqui cocada com leite condensado, ali uma bomba de chocolate. “É o doce chique da Val”, diz, entre gargalhadas. E era mesmo isto que precisávamos.

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Natal
A areia ganha emoção

“Então, feliz Natal para vocês”, atira Genilson ao volante. Mais vale arrumar já o gracejo óbvio, não sem uma última alfinetada: “atenção, os habitantes são natalenses, não papás Noel”. O contraste com a paisagem dos últimos dias é absoluto. O silêncio pára bruscamente, como se amplificasse tudo o que agora atravessa a janela da carrinha. Desligaram o mute, de repente, e não demos por isso. A cidade parece um colosso de dentes afiados contra o céu, a ponte uma montanha sobre o rio Potengi — ergue-se 55 metros acima das águas na zona central, precisa o guia Genilson, Gel, “como o de pôr no cabelo que já não tenho”. Recebe-nos um trânsito caótico que, à entrada na cidade, é mesmo um pára-arranca pela avenida que se ia alargar a três faixas para o Campeonato Mundial de Futebol e que, quatro anos depois, ainda está por concluir.

Do porto, saem cargueiros com tetris de contentores. Natal é a segunda maior exportadora de camarão, depois de Fortaleza. Mas daqui também saem toneladas de frutas para a Europa, sal, açúcar, peixe. Continua a ser um dos principais motores económicos da cidade, a par do “turismo e do pescado”, vai contando Gel enquanto atravessamos a zona mais antiga de Natal, da Ribeira à Cidade Alta.

Fundada no final do século XVI neste morro sobre o rio, são os bairros que conservam os edifícios mais antigos, alguns de arquitectura colonial portuguesa, engolidos pela confusão de trânsito e de painéis informativos de todas as cores sobre os prédios mais recentes. Paramos na Praça André Albuquerque para espreitar a Igreja Matriz e esticar as pernas pelas ruas. Não muito longe ficam os edifícios que dividiam os três poderes na cidade: o tribunal, a assembleia municipal e a prefeitura. Mas os sons de uma manifestação atraem-nos na direcção oposta. Dezenas de agentes de saúde vestidos com t-shirts azuis exigem o “correctivo salarial que o prefeito prometeu e não cumpriu”.

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Igreja do Galo, no bairro Cidade Alta

Seguimos viagem ao som do “carro do ovo” — “30 ovos da granja por 10 reais”, grita o altifalante sobre o tejadilho do carro minúsculo, caixas empilhadas no banco de trás. Próxima paragem: praia da Ponta Negra, do outro lado da cidade. Atravessamos o quadriculado de lojas da Cidade Alta. Ali ao fundo, ficam as mais caras, no bairro de Petrópolis, aponta Gel. E aqui, no centro comercial Midway Mall, os maridos e namorados vão sempre descobrir uma tradução mais acertada para português do Brasil. “Me dei mal”, ri-se Gel. Os arranha-céus vão-se sucedendo, enquanto à nossa esquerda já se vê o Parque das Dunas, o “segundo maior parque urbano do país”. “Se não tivesse a vegetação, soterrava Natal uns três metros de altura.” É possível percorrer o parque por uma das três trilhas, apenas com um guia ou biólogo. E, quem sabe, encontrar o lagarto-de-folhiço, um dos mais pequenos répteis do mundo. “Aqui é a formiga que come o lagarto.”

Cá de cima, já se vê a praia e o Morro do Careca lá ao fundo, na curva da baía. Parece que um gigante passou com um pente-zero pela nuca da colina, deixando uma estrada de areia entre a vegetação. Antes passavam por ali todos os motores, subia-se lá cima para vistas panorâmicas sobre a cidade, desciam os miúdos “à milanesa”. Mas a nuca despida foi ficando côncava, cada vez com menos areia. E desde 1984 que é proibido subir. O Morro do Careca, no entanto, mantém-se um dos postais turísticos da cidade e os veraneantes acotovelam-se para tirar fotografias lá em baixo.

Outrora, a mata atlântica que cobre o Parque das Dunas chegava até aqui, alongando-se pela costa. Mas a cidade foi-se intrometendo, com fome de praia. Hoje, concentram-se no bairro de Ponta Negra cerca de “80% dos hotéis e pousadas de Natal”. É a praia “mais turística”, vai avisando Gel. Confessa que prefere a tranquilidade da praia do Forte, junto ao Forte dos Reis Magos, na ponta oposta da orla da cidade. “Não tem tanto vendedor, os preços são mais baixos, tem mais areia e as rochas criam uma piscina natural na maré baixa”, enumera quando passamos por ela mais tarde.

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Quase 80% dos hotéis de Natal ficam na zona da Ponta Negra

Fica a sugestão. Agora é na Ponta Negra que estamos e é este o único areal à distância de uma curta caminhada a partir da maioria dos hotéis. Por isso, é a mais turística, dizia Gel. E, por isso, é um corre-corre de vendedores. Não, obrigado. Não, obrigado. Não, obrigado. É quase preciso recuperar o fôlego entre as solicitações. Passa o carro do espetinho, e do crepe, e da água de coco, e do picolé, e dos cocktails, e do milho verde. O vendedor de roupa de praia e o dos acessórios. Mais a catadupa de “barracas”: esplanadas de plástico e chapéus-de-sol sobre a areia, cada uma com o seu serviço de petiscos. Vai uma carne de sol, um camarão ou peixe frito? Dez reais pelo lugar. “Se tomar algo não paga.”

E, no final, ganham as dunas

“Com ou sem emoção?” Desde que saímos de Portugal que as conversas antecipam o momento em que as dunas se transformarão numa montanha-russa, diariamente moldada pelo vento. Contam os experimentados que seguem connosco em viagem que, à resposta, há-de seguir-se uma sucessão de volteios de suster a respiração, como se na areia a gravidade se regesse por outras regras. “Vão a Natal? Já sabem: Com emoção!” É isto todos os dias, desde que partimos de Lisboa. Por isso, quando chega o momento de entrarmos no buggy e Titio não formula a pergunta estampada em todos os souvenirs, é como se nos tivessem roubado o início de um filme. (A sério que ficámos desapontados por não ouvir um cliché?) Talvez Titio se tenha esquecido. Talvez se tenha cansado há muito de perguntar. A verdade é que não chegamos a saber. A verdade é que a pergunta não importa mais do que aqueles segundos, porque a resposta nunca trará surpresas. E emoção é coisa que não nos vai faltar.

Titio, Fernando só para o bilhete de identidade, leva uma vida ao volante. Foi condutor de camião, de autocarro, de táxi. Foi “jipeiro” nos tempos livres, só por maluqueira. “Aí eu vim fazer o buggy e fiquei sempre.” Já lá vão 33 anos. Ri-se: “A empresa já teve três donos e eu continuo aqui.” Aos 70 anos, volante e pedais são extensões do corpo, expansões da vida útil. “Ia ficar em casa fazendo o quê?” Se a idade conta, é só para somar anos e anos de experiência. Um jornalista à frente, três atrás. Já a pele desenha ondas no rosto à medida que Titio acelera estrada fora. “Vocês vão ficar jeito Bob Marley”, tinha avisado Genilson. Da praia ao Parque Turístico Ecológico das Dunas de Genipabu são quinze minutos. A estrada foi um preâmbulo. Chegamos à emoção.

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É então que subimos à crista de cada duna só para Titio deixar o buggy cair desamparado pela parede de grãos dourados. Ora de lado, ora de cabeça. Uma e outra vez. Foi para isto que viemos. Ali em baixo, o que agora é apenas uma mancha mais escura de areia chegou a ser um lago. “Depois não choveu quatro anos seguidos, secou e nunca mais.” Já lá vão 15 anos. Estamos nas dunas móveis, matizes de cremes em deserto de novelas, que o vento se põe a esculpir como lhe dá. Sobem, descem, avançam, recuam. O caminho não cristaliza um dia que seja. Têm de ser as bandeirinhas a guiar até quem leva mais anos disto que nós de vida. E hoje, conta Titio, “tem que se dar muita voltinha”. “Há muito buraco por causa do vento. Está mudando muito.” Mais uma descida pelo pano branco e nova lagoa, esta ainda com água. Quando chove, conta Titio, até dá para tomar banho ali. Mas, desta vez, as nuvens negras que cobrem os prédios de Natal, lá ao fundo, não vão chegar cá, assegura. Bem pode cair o céu sobre a capital de Rio Grande do Norte que “o vento leva”. Aqui, só banho de areia. E esse não falha um centímetro de corpo.

No posto das fotografias, logo a seguir à descida mais emocionante, quem tenta vender as recordações recebe-nos de t-shirt enrolada em volta do rosto. Só os olhos se deixam ver. No computador portátil encolhido num cubículo de madeira vão passando as nossas caras em cada momento da queda — em média, há 30 fotos para levar num CD por 40 reais. Não queremos comprar, mas continuamos por ali, porque Titio foi fazer piruetas no minideserto para os fotojornalistas. Até que, numa curva, algo se quebra e o buggy não anda mais. Era com emoção, não era? Titio não está preocupado. Não há volta a dar: o lugar é inóspito e a areia entra em todo o lado. Um esforço a mais e algo estala. “Está sempre a acontecer.” Com ou sem avaria, para Titio a conclusão vai ser a mesma, mesmo que a filha o pressione para a reforma. “Isso não é trabalho, não. É diversão!” Por isso, ali fica, de sorriso no rosto e mãos ao trabalho, enquanto o reboque não chega. Nós, turistas sortudos, continuamos caminho no buggy que entretanto chegou.

Ao volante segue agora Leo, natural de Genipabu — ou Jenipabu, dependendo do horizonte ortográfico para o qual se olhe. “Com j vem de jenipapeiro, uma planta que era utilizada pelas tribos indígenas. Mas depois vieram os portugueses e disseram que o certo era com a letra g”, explicava, momentos anos, o guia Gel. “As duas estão correctas. Você pode ver um autocarro com j e, a seguir, passar um com g.” Para o caso, pouco importa a grafia. Leo é daqui mesmo, mão de casas numa luta entre o mar e o deserto. Filho de pescador e pescador ele mesmo durante uns tempos, pelo menos até o peixe se deixar ficar cada vez mais longe da costa. “Já era preciso ficar 15 dias no mar alto.” Não dava dinheiro que pagasse tanta distância. Por isso, diz, cá “o pescador não soube fazer filho pescador”. Dos quatro irmãos, nenhum seguiu. Leo andou muitos anos pela construção civil. Tirou a licença de buggy em 2004. Antes o povo sobrevivia do que vinha na rede. “Agora há o turismo”, compara. O exemplo da mudança tem-no em casa: ele faz passeios pelas dunas, a mulher tem uma loja de souvenirs junto à praia.

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Leo vai-nos contando tudo isto entre nova sucessão de quedas a pique, agora na zona de dunas fixas pela vegetação. “Já andou cá atrás?”, pergunta às tantas alguém ao recuperar o fôlego. Leo ri-se como quem acaba de ser desmascarado: “Nem quero. É muita loucura!” Entretanto, há nova paragem para passeios e fotografias com uma família de dromedários. Foram trazidos por um empresário suíço há “16 ou 17 anos” e os mais novos nasceram já em Genipabu. Lá em baixo, vislumbra-se de novo a praia, onde as dunas quebram mas não cedem. Ficava ali o porto, com cerca de 30 edifícios, agora soterrados pela areia. “Quando a maré é grande, as ondas cavam a duna e consegue-se ver as fachadas.” Soberano, o deserto alimenta-se das casas, faz-se grande, sem oposição. Por ali se mede a linha de vida de uma aldeia: uma casa, metade areia, metade tijolo. Todos os anos, a duna avança um metro para dentro de Jenipabu, conta Leo. Um cronómetro feito de areia. Uma ampulheta literal.

Da esplanada do restaurante, no entanto, não se vê a duna chegar. Só praia mansa, marisco sobre a mesa e a música da banda de miúdos que desfila lá fora, em treinos para a festa do fim-de-semana. Depois do alvoroço da cidade e do buggy, o relógio volta ao ritmo dilatado dos últimos dias. E que bem que sabe.

A Fugas viajou a convite do Vila Galé Touros

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