Moldova, como uma visita a casa da avó

Na antecâmara de se celebrar o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, na próxima quarta-feira, viajamos pelas riquezas de um dos países mais pobres da Europa, por lugares remotos e por Chisinau, que amanhã comemora 582 anos.

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O trólei, com o interior banhado de uma luz moribunda, continuava a sua marcha ao longo de uma avenida que se eternizava. Procurava, no meio da semipenumbra, enquanto diminuía o número de passageiros, o néon a indicar um hotel. A cidade afastava-se, mergulhava cada vez mais nas trevas, até que o trólei se deteve e inverteu a marcha, estacionando, como o motor ligado, num largo. O motorista, surpreendido por me ver sentado no final da linha, levantou-se e veio ao meu encontro.

- Hotel? Ok!

Uns minutos depois, o veículo retomava a sua marcha, enquanto eu olhava através da moldura da janela mas já sem o interesse que antes me provocara. Tinha a certeza de que aquele homem, aparentemente cansado após um dia de trabalho, me haveria de deixar às portas de um espaço onde pudesse repousar o meu corpo também exausto.

Sinto um prazer enorme em chegar a uma cidade sem ter uma reserva num hotel.

Na primeira vez em que o trólei virou à direita, abandonando a longa avenida, o motorista chamou-me e, através de gestos, apontando com o indicador, mostrou-me a direcção que devia seguir. Atravessei a rua, havia obras por todo o lado e, à minha frente, uns minutos depois, descobri um edifício que se erguia num céu sem estrelas, dominando uma praça. Entrei, dirigi-me à recepção, paguei e recolhi a chave antes de subir no elevador.

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A manhã desperta bonita em Chisinau, só o vento murmura entre os ramos das árvores, enquanto eu navego nas recordações da noite anterior. A meia dúzia de passos do hotel, olhando à esquerda, sem qualquer destino traçado, sinto-me seduzido por umas cúpulas douradas que brilham à luz dos raios tépidos do sol.

Do pouco que lera e do menos que apreendera, Chisinau surgia aos meus olhos como uma das cidades mais tristes da Europa — e mais pobres. Mas, de repente, caminhando ao longo do passeio que me deixava ver o mosteiro de Ciuflea, pintado naquele azul tão bonito, lembrava-me também de ter lido algo mais, num blogue de uma jovem canadiana cujo nome não é para aqui chamado, de ela recordar, nesta sua viagem pela Moldova, que a sua avó vivia mesmo em frente a uma igreja ortodoxa. Ela, ao contrário dos guias turísticos que consultei posteriormente, fazia referência a esse admirável conjunto religioso que agora tenho à minha frente, depois de transpor o portão principal.

O mosteiro ortodoxo de Ciuflea, dedicado a Teodoro de Amásia, foi financiado por Anastasie Siufli para satisfazer o último desejo do seu irmão Teodor Siufli, iniciando a construção do local de culto em 1854, ano da morte de Teodor, para o ver consagrado quatro anos mais tarde, em Junho de 1858. Um e outro, importantes mercadores, estariam longe de imaginar que um dia, em 1962, com o encerramento de algumas igrejas e com a redefinição de outras, entre elas a catedral, a mais importante da cidade, o topo da hierarquia da igreja haveria de se mudar para Siuflea, com o estatuto de catedral que iria manter até 2002, altura em que voltou a ser um mosteiro.

Aprecio o silêncio no interior, o poder da fé, assisto à celebração religiosa.

O exterior cativa-me outra vez, com aqueles azuis e dourados, aquelas nove cúpulas erguendo-se num céu com escassas nuvens.

Atravesso a rua e sigo ao longo da principal avenida de Chisinau. Fortemente bombardeada durante a II Guerra Mundial, a capital da Moldova, que amanhã celebra o seu 582.º aniversário, sente-se órfã do seu coração histórico.

Eu começo a apreciá-la.

Os meus passos cruzam-se com os de Eduard Malai numa cidade que tanto mudou em 20 anos, tantos como aqueles que este moldavo se habituou a viver num outro país da Europa que já se encarregou de adoptar.

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- A cidade tem mudado em termos de construção, há mais prédios e restaurantes, mas de resto parece não ter evoluído. O que menos aprecio é o ritmo em que vivem as pessoas em Chisinau, sente-se um stress permanente, um ritmo acelerado, cada vez mais visível no comportamento. Antigamente, as pessoas eram mais amáveis.

Nestes dias de Outono, ainda cheios de sol, sento-me no tranquilo Parcul Catedralei, o parque da catedral, para deixar o tempo correr enquanto observo a alegria das crianças, vigiadas pelas mães, em perseguição dos pássaros que enchem os passeios à volta da catedral ortodoxa. Mesmo em frente, um campanário, construído em 1836, derrubado durante a II Guerra Mundial e restaurado em 1997, domina toda a cidade. Reza a lenda que, devido a problemas burocráticos em São Petersburgo, o sino que lhe estava destinado viajou para Bolhrad, na actual Ucrânia, recebendo Chisinau um de maiores dimensões para o qual o campanário era demasiado pequeno.

Cidade verde

Chisinau, reconstruída no início da segunda metade do século passado no inestético estilo soviético, com os seus edifícios tão semelhantes, é considerada, por mais estranho que possa parecer, uma das cidades mais verdes da Europa. Ao longo das ruas, há áceres, limoeiros e castanheiros e a capital da Moldova orgulha-se de abrigar um total de 19 parques, alguns dos quais estéreis de ruído urbano. Basta-me atravessar a avenida para ir ao encontro de outro deles, o Stefan cel Mare, o mais antigo da cidade (precisamente 200 anos, já que foi inaugurado em 1818), em tempos conhecido por Pushkin (pode admirar um busto do poeta) e para muitos ainda o jardim dos namorados.

Regresso à praça, planto os olhos na estátua de Stefan cel Mare, esse príncipe moldavo que também é conhecido por Estêvão III da Moldávia, o herói que travou os avanços do Império Otomano e de quem se diz que perdeu apenas duas das quase 50 batalhas que travou. À minha volta, registo a imponência de edifícios governamentais, do parlamento ou o palácio presidencial. E, atravessando a avenida, toco as pedras das Portas Sagradas, o Arco do Triunfo de Chisinau, levantado em 1840 para celebrar a vitória das tropas soviéticas sobre o Império Otomano, ao lado do qual revejo o campanário e a catedral que agora visito para admirar os seus frescos. Saio para a rua e não demoro a passear vagarosamente pela Eugen Doga, a rua pedonal que presta homenagem ao célebre compositor moldavo que nasceu na aldeia de Mocra, no distrito de Ribnita, actualmente sob a administração do governo de Transnístria, esse país que ninguém reconhece internacionalmente.

Despeço-me de Eduard Malai antes de regressar ao hotel.

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- O almoço de casamento dos meus pais foi nesse hotel.

Ao longo da avenida que também presta o seu tributo a Stefan cel Mare vou pensando nas palavras deste homem cujo futuro não passa por Chisinau.  

- Há muitas pessoas a abandonar o país na primeira oportunidade. Os jovens são mal remunerados e o nível de vida é caro. Mas para os mais velhos é ainda mais difícil. As poucas forças que lhe restam são para tratar da casa e das hortas que lhe fornecem alguns alimentos – vivem no passado.

Só quando deixo o hotel, por um dia ou dois, é que me apercebo do lema que o define — é como visitar a casa da avó. 

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E assim também me parece o país.

A religião e o vinho

Duas turistas sobem a colina pronunciada no momento em que o autocarro me deixa em Butuceni e eu, em vez de rumar ao complexo de museus, prefiro caminhar pela aldeia onde homens e mulheres, nas ruas ou nas suas casinhas tão coloridas, me saúdam com um sorriso, com a mesma ternura que por norma nos dispensam as avós. Depois, ao final da manhã, subo por um trilho silencioso até ao complexo de museus que atrai um grande número de turistas — é o espaço cultural mais importante do país.

Candidato à lista de Património Mundial da UNESCO, Orheiul Vechi é o lugar mais pitoresco de todo o país, com os seus mosteiros esculpidos num penhasco com uma panorâmica soberba para um vale e para o rio Raut, uma espécie de serpente no seu percurso sinuoso em redor das montanhas. Escavadas por monges ortodoxos no século XIII, estas caves permaneceram inabitadas até ao século XVIII, altura em que foram tomadas pelos residentes de Butuceni,  a quem coube também, em 1905, a construção de uma igreja no cume da montanha dedicada à Ascensão de Maria. Destruída durante a II Guerra Mundial e abandonada durante o regime soviético, retomou as suas funções em 1996, altura em que começou a ser lentamente restaurada pelos monges que se decidiram a regressar a este lugar de culto — e estratégico para Stefan cel Mare, que por estes lados ergueu uma fortaleza no século XIV, mais tarde derrubada pelos Tártaros.

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Caminho durante uma dezena de quilómetros, cumprimentando agricultores, lançando olhares ao penhasco, sempre na mais completa serenidade, a mesma que acompanha a colorida igreja que se projecta no meio das casas de Trebujeni e o rio onde os pescadores tentam a sua sorte.

Como eu, a minha, à boleia.

E, em menos de nada, chego a Cricova, famosa pela produção de vinhos. Mais de uma centena de quilómetros de caves (remontam ao século XV), com garrafas de um lado e do outro, algumas delas do início do século passado, uma colecção interminável que terá seduzido Yuri Gagarin em 1966 — conta-se a história de que o astronauta russo visitou as caves e só voltou a emergir das profundezas, necessitando para tanto de ajuda, dois dias mais tarde.

E Vladimir Putin também elegeu Cricova para celebrar o seu 50.º aniversário.

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