Para estes bailarinos, a diferença é uma condição e não uma limitação

Desde 2015, o projecto Dança para Todos, da Fundação Nuno Silveira, em Gondomar, recorre à dança como estímulo para pessoas com deficiências físicas e cognitivas. Semanalmente, 24 utentes entregam-se de corpo e alma a uma arte que não tem fronteiras.

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André Rodrigues
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“Gosto de fazer aqueles passinhos ao som do Dura”, conta Mónica, referindo-se ao êxito mundial de Daddy Yankee que invadiu as rádios em Janeiro. Mal ouve a palavra-chave, o resto do grupo irrompe em aplausos para reforçar a preferência pela faixa. Não demora muito até que todos se ponham em fileira para dar início à coreografia. Afinal, conhecem cada passo de cor e salteado e sabem que são imbatíveis nos movimentos da cintura para cima. À medida que o compasso acelera, o bater dos pés faz estremecer o chão do pavilhão da Fundação Nuno Silveira, em Gondomar. É mais um ensaio do grupo Dança para Todos, criado em 2015 para mostrar que a força de vontade é o único requisito para dançar. Começou com uma dezena de utentes, mas são já 24 os bailarinos que compõem o projecto.

Tal como Mónica, alguns vivem na instituição há vários anos, ao passo que outros são externos, mas participam diariamente em actividades como yoga, música, teatro e storytelling.  A dança, enquanto expressão artística particularmente sensorial que comunica o que não cabe em palavras, surgiu para potenciar as capacidades dos utentes e evitar que sejam reduzidos às limitações motoras e cognitivas. Então, criaram-se três turmas de trabalho por níveis: o grupo mais autónomo, o grupo menos autónomo e a junção dos dois.

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Pedro tem 30 anos e faz parte do Pétalas Soltas, colectivo de exibição que se apresenta regularmente em público. Já tinha experimentado hip-hop antes de entrar para a instituição, mas considera-se “muito dançarino” e afirma que gosta de “todo o tipo de dança”. “Aprendo as coisas rápido e gosto de aprender muito”, confessa ao PÚBLICO.  Além de actuar com os colegas, Pedro já subiu a palco a solo na Exponor, conquistando uma estrondosa ovação em pé. Na audiência estava, de olhos marejados e peito a inchar de orgulho, a sua maior fã – Sofia Almeida, técnica superior de educação social na fundação. “Quando todos se levantaram para aplaudir, eu senti que era a família dele”, diz. “Não há nada que pague isso”.

Dançar com a diferença

Foi, aliás, Sofia quem batalhou para dar vida ao projecto, por isso faz questão de acompanhar as actuações do grupo sempre que pode. “A dança permite uma criatividade e libertação que são muito boas para eles”, reconhece. A satisfação dos utentes reflecte-se no passa-palavra que, volta e meia, traz um novo membro aos ensaios. “Na primeira aula experimentam e, à partida, ficam, porque todos conseguem fazer alguma coisa”, reconhece.

Ana Cláudia é a mais recente bailarina do grupo. Ainda “não tem muito a dizer”, como novata que é nestas andanças, mas é prova viva de que aqui não há impossíveis. “Ela não sai da cadeira [de rodas], mas tenta levantar a parte superior do corpo com a ajuda de uma faixa”, revela Sofia Almeida, que exemplifica também com o caso de “Cristiano, que dança muito com os ombros”. “Todos eles conseguem, desde que tenham vontade”, reforça.

É esse espírito de superação que Maria Manuel Mendes, professora e responsável pelo projecto, tenta incutir nos alunos a cada aula, combinando as capacidades de cada um. “Há uns que têm mobilidade, mas têm dificuldade em sentar-se, então nós jogamos com uns nas cadeiras e outros no chão”, exemplifica, notando “que há movimentos mais difíceis, mas é igual quando pessoas que não têm deficiência se sentem limitadas com certos passos”.

A noção muito própria de espaço e tempo e a existência de diferentes destrezas dentro do grupo exige um trabalho adaptado às necessidades de cada turma. “No Pétalas Soltas, eles aprendem rápido e decoram muito bem”, conta Maria Manuel. “Nos outros dois, fazemos o primeiro passo, depois o segundo, depois vamos juntando e treinando”. Em média, são precisos dois a três meses para que interpretem duas coreografias de forma mais autónoma. A estrutura dos ensaios é semelhante: primeiro faz-se o aquecimento, depois recapitula-se o que foi feito, pratica-se a coreografia e, no final, há espaço para jogos e brincadeiras, “como se fosse um espectáculo ou um concurso”.

Uma sensibilidade especial

A aprendizagem é constante e mútua, sublinha Maria Manuel. Formada em dança, actividade física e saúde, foi na Fundação Nuno Silveira que teve oportunidade de trabalhar pela primeira vez a dança como motor de inclusão social. “No início, encarava-os como pessoas diferentes, achava que tinha que ter outro comportamento”, recorda. “Ao longo do tempo, fui aprendendo a falar com eles como os adultos que são”.

No Dança para Todos, não há lugar para estereótipos nem preconceitos. “Eles não gostam de sentir que é música mais para crianças, ou coreografias infantis a imitar os animais”, conta a professora. Nesse sentido, há o cuidado de escolher músicas que passam na rádio e que todos conhecem. Para decorar, “pegam em palavras-chave e vão lá por associação”.

Jorge, 46 anos, revela que gosta muito de dançar o “fado”. Refere-se não à canção portuguesa, mas aos versos do mesmo nome que compõem Lusitana Paixão, música interpretada por Dulce Pontes. Tanto nas coreografias lentas como mexidas, “é preciso alguma paciência”, diz o bailarino, que tem que “fazer um esforço maior por causa da perna”.

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Se é verdade que a dança goza aqui de uma cadência e sensibilidade próprias, também os contratempos assumem outra escala. “Ás vezes não trouxeram um brinco e para eles é um problema”, diz Maria Manuel. “Mas não dura muito, porque eles relativizam tudo”.

O ano lectivo arrancou há algumas semanas, mas o Dança para Todos já treina as novas coreografias e pensa em vôos maiores. Sonham ir a um programa da tarde na televisão nacional e inspirar toda a gente a dançar independentemente da sua condição. “Eles são felizes com as suas limitações – essa é a grande lição que todos podemos levar para a vida.”

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