“O que é violação? E sexo anal?” Como explicar às crianças o caso Ronaldo

As denúncias que envolvem o jogador são o tema de todas as conversas. Devemos chamar as coisas pelos nomes? Ou usar, com as crianças, termos mais “suaves”? “Não existem termos ‘suaves’”, diz psicóloga.

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Reuters/Massimo Pinca

E, de repente, os miúdos chegam a casa com perguntas que os adultos consideram embaraçosas. O alegado caso de violação que envolve Cristiano Ronaldo, um ídolo para os mais novos, não os deixará indiferentes e haverá muitas questões que podem colocar aos pais. Como responder? O PÚBLICO perguntou a alguns especialistas. 

Antes de mais, a calma é o melhor aliado dos pais para responder a perguntas como: "O que é violação? O que é sexo consentido? O que é sexo anal?" O ideal é “chamar as coisas pelos nomes para falarmos todos a mesma língua e minimizar os equívocos”, aconselha Rui Ferreira Carvalho, médico interno de psiquiatria da infância e adolescência do Centro Hospitalar Lisboa Norte (que inclui os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente). O também coordenador-geral do projecto de educação sexual SexED e membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC) defende que se deve ensinar desde cedo os nomes científicos dos órgãos sexuais.

Nisto de “chamar as coisas pelos nomes”, Ferreira Carvalho vai ao encontro da autora do livro com esse mesmo título, Vânia Beliz, licenciada em psicologia clínica, mestre em sexologia. “Não existem termos 'suaves'”, diz a psicóloga. “Quando conversamos sobre qualquer assunto, devemos ter a preocupação de perceber se estamos a ser compreendidos e devemos deixar a possibilidade de a criança perguntar, à sua maneira, ajudando-a a reflectir sobre as suas questões”, continua a especialista em educação sexual. "Se há uma pergunta, terá de haver uma resposta."

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Ao falar abertamente, está a proteger o seu filho: “Crianças e adolescentes que têm informação de qualidade, ao longo de seu desenvolvimento, sobre assuntos sexuais estão seis vezes mais protegidos de abordagens sexualmente abusivas do que os seus pares que não tiveram acesso a conhecimento nessa área”, assegura a pedagoga brasileira Caroline Arcari, mestre em educação sexual e responsável por um projecto na área de prevenção da violência sexual, premiado no Brasil.

“A educação sexual é fundamental para a protecção, mas também para evitar a formação de agentes de violência (abusadores)." Por isso, é importante falar sobre “consentimento, diferença entre toques de afecto e toques abusivos, autonomia corporal”, enumera.

É importante ensinar aos mais novos que “ninguém pode tocar no corpo de outra pessoa sem o seu consentimento” e que “tem o direito a dizer 'não', quando não quer que outra pessoa lhe toque, ou se sinta forçado a alguma prática sexual que não quer”, aconselha Paula Pinto, coordenadora da Comissão de Educação Sexual da SPSC e do serviço Sexualidade em Linha – 800 222 003. Explique-lhe que no caso de acontecer, é crime e que deve ser denunciado.

“'Não' é não. 'Não' quer sempre dizer 'não'. E um 'não' tem de ser respeitado”, sublinha o pedopsiquiatra Ferreira Carvalho para o qual “é de extrema importância perceber que a aplicabilidade do consentimento à actividade sexual (e portanto 'sexo consentido') implica a comunicação entre as partes envolvidas”. Vânia Beliz acrescenta que “as crianças sabem o que é namorar e que existem relações sexuais”, logo, continua, “é importante que saibam que as pessoas estão juntas se ambas quiserem e que devem respeitar as decisões umas das outras”. 

Inocente até prova em contrário

Se o seu filho perguntar se Cristiano Ronaldo é culpado, deve explicar-lhe que toda a gente tem direito à presunção da inocência até prova em contrário e não pode ser julgado na praça pública. “Devemos debater esta questão com a maior serenidade, sem tirar conclusões precipitadas”, argumenta Ferreira Carvalho. Deve, então, esclarecer que o que “está a ser discutido é algo sério e grave, que deve seguir o seu rumo dentro dos mecanismos disponíveis”, continua, aconselhando ainda a nunca criticar ou insultar potenciais vítimas de abuso sexual ou de violação porque um comportamento destes pode levar a vítima a silenciar e a guardar segredo.

“A violação, o abuso, a violência sexual pode vir de qualquer lado, normalmente de alguém próximo e quase sempre envolve poder, ameaça, medo; o silêncio surge exactamente do medo e do receio da exposição da intimidade”, realça Vânia Beliz.

Já Paula Pinto prefere não abordar o caso de Ronaldo, mas diz que se um caso mediático coloca em discussão temas relacionados com práticas sexuais, “é importante que a resposta vá de encontro às necessidades [da criança ou do jovem], interesse e curiosidade, sempre, em função da sua idade”.

Deve sempre perguntar ao seu filho onde é que ouviu falar, o que ouviu ou o que sabe sobre o assunto, assim pode adequar a resposta à sua fase desenvolvimento e compreensão. “A sexualidade faz parte do desenvolvimento de todas as pessoas, influencia pensamentos, sentimentos e acções. A criança começa por tomar consciência do seu sexo biológico (pénis/vagina), a identificação com o género feminino/masculino; e torna-se cada vez mais consciente do seu corpo e do corpo do outro. Aqui é importante introduzir a noção de limites, de privacidade”, defende a psicóloga clínica e terapeuta sexual. 

E Ronaldo pode continuar a ser um ídolo para os nossos filhos? “Devemos explicar-lhes que a situação está a ser investigada e que agora existem muitas opiniões. Devemos sensibilizar para o perigo da informação errada como as fake news e de como isso pode prejudicar a vida das pessoas”, responde Vânia Beliz. Para Caroline Arcari “é fundamental” que as crianças tenham ídolos, mas esses devem “representar valores éticos para além da fama e do sucesso”, conclui.

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