As lições perdidas do mandato único

O PS mudou de opinião sem explicar – agora entende que há mandato único, mas esqueceu-se de escrever isso no Estatuto do Ministério Público revisto em dezembro do ano passado.

1. Sobre o mandato de Joana Marques Vidal já tive oportunidade de escrever em Janeiro último: “Joana Marques Vidal foi a melhor procuradora-geral da República da democracia.” No mesmo artigo, também deixei claro que sou um adepto do mandato único pelas várias razões aí mencionadas. A CRP não proíbe a recondução. Mas também não obriga. Portanto é uma questão de princípios políticos, e não de constitucionalidade. E, desse ponto de vista, sou sempre contrário a qualquer recondução porque ela obriga a uma avaliação que necessariamente contamina a independência do lugar. Fui contra a recondução do Presidente do Tribunal de Contas em 2013. Fui contra a recondução do governador do Banco de Portugal em 2015. Seria contra a recondução da procuradora-geral da República em 2018, independentemente da avaliação que possa fazer do mandato anterior. Parece-me, pois, que a solução encontrada – continuidade sem recondução – é absolutamente correta. E registo a coerência intelectual do Presidente da República a quem tenho criticado em muitas outras ocasiões (por exemplo, quando infelizmente insiste em comentar publicamente processos judiciais).

2. Todo o circo político e mediático montado durante o processo que antecedeu a decisão de nomear Lucília Gago poderia ter um aspeto positivo – esclarecer definitivamente a questão do mandato único, agora que sabemos que se cumpriu o precedente (desde as alterações de 1997) de não reconduzir. Mas não. O PS mudou de opinião sem explicar – agora entende que há mandato único, mas esqueceu-se de escrever isso no Estatuto do Ministério Público revisto em dezembro do ano passado. A direita da coligação PàF (o “passismo” com visibilidade mediática que acabou por arrastar o CDS sabe-se lá porquê) defende o principio, mas não a falácia. Por isso vai de recondução em recondução. E o PSD oficial ajudou na confusão – Rio pede uma revisão constitucional para clarificar que não há mandato único. Portanto, estamos onde sempre estivemos. Prevalece o grouxo-marxismo (estes são os meus princípios; se não gosta deles, eu tenho outros). E tudo fica adiado para 2024, pois o tema obviamente já morreu.

3. Em 2018, numa sociedade transparente, espera-se que a escolha do procurador-geral da República seja um processo aberto e escrutinado, seguindo as melhores práticas na matéria – nomeia-se uma comissão de avaliação que possa refletir os representantes políticos e os representantes das profissões judiciais (por exemplo, o CSMP), os muitos candidatos apresentam-se, os finalistas são sujeitos a uma audição pública em que apresentam o seu programa para um mandato longo e sua equipa, os vários interesses da sociedade escrutinam os finalistas, a comissão de avaliação leva o nome desses finalistas assim como o resultado da consulta pública ao primeiro-ministro e ao Presidente da República que escolhem, em conjunto, o novo procurador-geral da República. Não estamos em 1978. Naquela época o processo era opaco e fechado numa corte longe de olhares indiscretos. Era um processo que se guiava por ausência total de escrutínio, sem candidaturas, alguns nomes apareciam nos jornais colocados sabe-se lá por quem, tudo partidarizado em função de agendas próprias, chicana pura. Pedir o programa e equipa nem passava pela cabeça de ninguém. E depois aparecia um novo procurador-geral da República do qual nem a comunicação social, nem a classe política, nem os especialistas sabiam absolutamente nada. E repetiam-se as vacuidades habituais durante os dois dias seguintes. Espere, caro leitor. É que estamos em 1978. E os partidos ainda não arranjaram tempo para mudar o Estatuto do Ministério Público (atualmente a 13.ª versão desde 1986) para que possamos ter um processo digno de 2018.

4. O debate público sobre a escolha da nova procuradora-geral da República mostrou também a velha filosofia do homem/mulher providencial. Sobre a reforma do Ministério Público, o direito processual penal, a reorganização dos tribunais penais (por exemplo, com a criação de uma jurisdição especializada para casos de corrupção em funções públicas), a ineficácia das múltiplas instituições e dos pacotes anteriores (as quase 200 medidas), a ausência de resultados no combate à corrupção do ponto de vista comparado (certamente não se medem pela abertura de inquéritos, mas por condenações transitadas em julgado que tardam décadas e a recuperação do património ilegítimo que misteriosamente desaparece), sobre tudo isto, os partidos não têm opinião nenhuma. Aliás, notou-se que os restantes 1800 magistrados do Ministério Público são absolutamente irrelevantes neste debate. Tudo se reduz a uma e uma só pessoa. E agora até 2024 temos o assunto encerrado. Foi o “momento definidor”.

5. Em 2019, teremos a decisão de reconduzir ou não o comissário português (suponho que o PS quer recuperar o lugar depois de quinze anos de PSD). E, em 2020, teremos a escolha do novo governador do Banco de Portugal (presumo que o PS também entenda que deve ser alguém da sua órbita depois de dez anos de alguém da órbita PSD). Tenho a certeza que vão ser processos transparentes (não há facilitadores televisivos já a circular nomes), com escrutínio público, candidaturas próprias, consulta geral, audição parlamentar, apresentação de programa e ideias. Vamos ser certamente surpreendidos com as melhores práticas de um país que diz apostar num Estado moderno, tecnológico, aberto, inovador e cristalino – porque evidentemente os partidos políticos promovem a clareza pública de todos estes processos quando estão no Governo e quando estão na oposição – querem sempre escolher os melhores.

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