Politicamente incorreto

Uma violação é uma violação em qualquer cenário. Mas nalguns cenários terá de ser mais do que uma má conduta.

O que me leva a escrever não é o CR7 mas uma declaração recente das Nações Unidas sobre as mais de 130 queixas contra funcionários civis que nela trabalham: "As alegações continuam a ocorrer apesar dos nossos esforços para prevenir a exploração sexual, bem como outras formas de má conduta."

O assunto caiu no esquecimento e nem um desses alegados exploradores sexuais mal comportados viu o seu nome ou foto divulgado.

Uma mulher de 25 anos seduz e é seduzida por um homem de 22 anos. À discoteca segue-se o hotel dele, na suite dele, entre os preliminares, o jacuzzi. Ele avança para sexo anal, ela diz que não, ele continua. É uma violação se assim for. É uma violação: porque não é não, em qualquer circunstância. Se assim for: porque a presunção de inocência também se aplica, mesmo quando o então miúdo de 22 anos, rico e promessa futebolística, se alcandorou a personalidade mediática mundial.

Este episódio sexual desperta multidões, não por causa do ato em sim, mas pela qualidade mediática de Cristiano Ronaldo. Não se tratasse de CR7 e o episódio não teria audiências ululantes, jornalistas de plantão e comentadores ultrajados. Seria apenas má conduta...

Abuso sexual, agressão sexual, violação. São assuntos complexos que não merecem ser normalizados. Em pleno século XXI, entre guerras, despiques, regionalismos e fanatismos religiosos, a mulher é usada como instrumento, arma, saco de pancada. Um pouco por todo o lado, em formas e com métodos que desafiam a imaginação.

O Nobel da Paz revelou uma realidade que muitos desconhecem, uns por ignorância voluntária, outros por puro descaso. Movimentos cívicos mediáticos e imprensa que denunciem a degradação a que mulheres e crianças (e não só) são sujeitas em contextos de proteção internacional, poderiam ser determinantes. Quando quem te assedia veste o uniforme da ONU tem o poder de determinar se comes ou não, se o teu filho ou os teus pais recebem medicamentos ou não... Quando quem te atormenta empunha uma arma, te agride e ainda agradeces que te viole a ti e não ao teu filho. Quando tens tenra idade, nem aprendeste a falar e a andar e quem te agride é exatamente quem te devia proteger... o mediatismo seria uma arma fundamental na tua defesa.

Seria, pelo menos, útil que esta catástrofe humana quotidiana abrisse os espaços noticiosos e, a exemplo do caso CR7, se escalpelizasse a vida dos alegados agressores. Imagino que a exposição da imagem de um funcionário da ONU ou de um soldado das tropas internacionais em missão de paz que tenha “explorado sexualmente” ou tido uma “má conduta” seria um fator de dissuasão poderoso dessas más condutas.

Mediatizar poderia ser fundamental para inverter situações recorrentes nos mecanismos internacionais de proteção sem prejuízo das indignações # e molduras nas redes sociais que vão satisfazendo consciências até serem ultrapassadas no dia seguinte pelas imagens de uma qualquer "kardashian" façanha.

Gostaria de ver o mesmo circo mediático em torno da política proposta por Guterres – uma potencial pedrada no charco que mereceu menos atenção do que a alegada violação protagonizada por CR7 – questionando se já foi adotada e se efetivamente foi interrompido o pagamento de taxas milionárias aos países que não investigaram as acusações contra os seus soldados.

Gostaria de ver o mesmo empenho mediático na obtenção de declarações sobre o resultado das queixas relativas aos militares ou a resposta dada às 130 queixas relativas aos funcionários civis da ONU.

Gostaria de ver o movimento #MeToo a dar voz a essas vítimas ou a publicitar o caso do ex-diretor da ONU, Anders Kompass, que, em 2016, após denunciar as violações de crianças na República Centro-Africana, se demitiu como protesto contra a impunidade dos capacetes azuis, ou a divulgar os países cujos soldados atentaram contra mulheres e crianças.

Não me interpretem mal. Tenho um enorme respeito por vítimas de uma sociedade em que a mulher (e não só) ainda é obrigada a submeter-se para garantir a sua vida profissional e a sua subsistência – claro que o que gostaria mesmo é que elas tivessem aplicado uma sonora bofetada e feito soar trombones, mesmo que isso significasse lavar escadas ou passear cães em vez de desfilar na passadeira vermelha. 

Uma violação é uma violação em qualquer cenário. Mas nalguns cenários terá de ser mais do que uma das formas de má conduta.

P.S.: As minhas desculpas ao CR7 por utilizar despudoradamente o seu nome.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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